terça-feira, 29 de junho de 2010

HAITÍ E ALAGOAS.... UMA TRAGÉDIA, LÁ E CÁ...

Tendo praticamente a mesma extensão territorial, Alagoas e Haiti guardam também outras semelhanças históricas.
A reportagem é de Thalles Gomes e Ti Rivye Latibonit e publicada pelo Brasil de Fato, 23-06-2010.
O número de atingidos pelas fortes chuvas que assolaram Alagoas na última sexta-feira, 19 de Junho de 2010, são desoladores. De acordo com dados divulgados pela Defesa Civil do estado em 21 de Junho, as enchentes dos rios Mundaú e Paraíba atingiram 177.282 pessoas, deixando mais de 600 desaparecidos e 26 mortos. Ao todo, 26 municípios foram afetados pelas enchentes. São dados alarmantes, mas seria no mínimo insano compará-los aos 300 mil mortos e mais de 1 milhão de desabrigados que o terremoto de 12 de Janeiro de 2010 acarretou no Haiti. Nesse caso a comparação é válida não pela quantidade, mas sim pela qualidade.
Tendo praticamente a mesma extensão territorial, Alagoas e Haiti guardam também outras semelhanças históricas. Em suas terras surgiram dois marcos da luta pela liberdade nas Américas. Zumbi, Dandara, Ganga Zumba, Acotirene e os quilombolas de Palmares combateram a escravidão negra e criaram em plena Serra da Barriga uma sociedade livre e igualitária que resistiu por mais de um século contra as ofensivas dos senhores-de-engenho e capitães do mato.
Menos de cem anos após a morte de Zumbi em terras alagoanas, Toussaint Louverture, Capóis La Mort, Alexander Petion, Henri Kristophe e Jean Jacques Dessalines lideraram aquela que foi a primeira revolução vitoriosa de escravos que se têm notícia na história da humanidade. Em 1804, o Haiti se tornava independente, abolia a escravidão e iniciava um processo popular de reforma agrária.
Essa ousadia foi punida severamente pelos senhores de engenho de ontem e de hoje e, ao que parece, Alagoas e Haiti foram escolhidos como símbolos de sua opressão e imponência. Ao Haiti, após 1804, foi imposta uma descabida e impagável “dívida da independência” por parte dos Franceses, seguida de vinte anos de ocupação militar estadunidense (1915-1934) e uma ditadura sanguinária dos Duvalier pai e filho, que em trinta anos (1957-1986) assassinou cerca de 30.000 haitianos.
Com a abertura política no final da década de 80, a esperança de mudanças surgiu com a chegada ao poder do Padre Jean Bertrand Aristide em 1990, mas foi extinta menos de um ano depois com mais um golpe militar sob os auspícios de Washington. Desde então, o país não conseguiu encontrar o equilíbrio e autonomias suficientes para caminhar com as próprias pernas. Situação que só se agravou com a ocupação militar da MINUSTAH em 2004, liderada pelo exército brasileiro. O resultado é que o Haiti é hoje a nação mais pobre do continente americano, com 56% da população abaixo da linha da pobreza e com uma expectativa de vida de 58,1 anos. Isso sem contabilizar as conseqüências do terremoto de 12 de Janeiro.
Não houve ocupações militares da ONU ou dos Estados Unidos em Alagoas, é fato, mas em compensação o estado vive sob uma ditadura ferrenha que já dura séculos e que ceifou mais vidas que qualquer outro regime ditatorial nas Américas: a ditadura da Cana. Mesmo sendo o segundo menor estado em extensão no Brasil, Alagoas está entre os cinco maiores produtores de cana-de-açúcar do país. São 448 mil hectares destinados para esse monocultivo, com uma produção que se aproxima dos 30 milhões de toneladas de cana por ano. Isso só é possível graças à devastação ambiental e à exploração dos trabalhadores.
Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o estado é o terceiro do país em índices de trabalho escravo, e o primeiro da região Nordeste com mais casos de trabalho escravo no campo. Somente em 2008, foram libertados 656 trabalhadores escravos, todos saídos dos canaviais. O resultado é que Alagoas sustenta hoje o pior Índice de Desenvolvimento Humano, a maior taxa de mortalidade infantil, o maior índice de analfabetismo e a menor expectativa de vida dentre todos os estados do país. Isso sem contabilizar as conseqüências das enchentes de 19 de Junho.
Fenômenos naturais podem agravar, mas não criam a miséria. No Haiti e Alagoas, a miséria já existia antes de qualquer terremoto ou enchente.
Os negócios da Catástrofe
Nos dias que se seguiram ao terremoto de janeiro, a devastada Porto Príncipe se tornou o local de peregrinação preferido para políticos e personalidade de todo mundo expressarem sua compaixão. Sobrevoando as ruínas em seus helicópteros, declararam com voz embargada suas condolências perante as câmeras de televisão e reafirmam compromissos de ajuda às vítimas do terremoto. O fenômeno parece se repetir em terras caetés. Campanhas para arrecadação de alimentos e agasalhos, visita do Ministro de Integração Nacional aos municípios afetados, discursos emocionados de governadores e candidatos à presidência, promessas de verbas e ajudas às vítimas das enchentes.
No caso de Alagoas ainda é cedo para tal conclusão, mas passados quase seis meses do terremoto no Haiti, pode-se dizer que essa compaixão tem prazo de validade e não resiste a novas manchetes internacionais.
As ruínas ainda dificultam o tráfego pelas ruas de Porto Príncipe e não se vê nenhuma movimentação por parte das tropas da ONU ou de qualquer outra entidade internacional para a retirada dos escombros, muito menos para a reconstrução das casas e edifícios. Os acampamentos improvisados se proliferam por praças e terrenos baldios e as únicas ações visíveis do governo são recomendações de higiene espalhadas em baners e faixas, além de escassos mutirões de voluntários que retiram com as próprias mãos os entulhos dos prédios.
Não que falte dinheiro. A Conferência Internacional de Doadores Rumo a um Novo Futuro para o Haiti ocorrida em 31 de março no escritório das Nações Unidas em Nova Iorque definiu a quantia de U$ 9,9 bilhões a serem desembolsados para a reconstrução do país, sendo que U$ 5,3 bilhões serão usados já nos próximos dois anos.
Acontece que o a idéia de reconstrução desses doadores é bastante peculiar. Como afirmou o empresário estadunidense Bradley J. Horwitz durante a Conferência de Nova Iorque “o que é bom para os negócios é bom para o país”. Portanto, quando esses doadores falam em beneficiar a agricultora haitiana, o que eles querem dizer de fato é que irão financiar o monocultivo da manga para que a Coca-Cola possa lançar no mercado um novo refrigerante feito a partir desta fruta.
Quando falam em facilitar a exportação de produtos têxteis especializados haitianos e criar mais de 100.000 empregos no país, o que querem dizer de fato é que irão aumentar a lucratividade das indústrias ‘maquiladoras’ estadunidenses instaladas no Haiti, que não pagam nenhum imposto e não respeitam os mais elementares direitos trabalhistas. Quando falam em melhorar a infra-estrutura com a construção de novas estradas, eles buscam de fato garantir o lucro de empresas como a espanhola Elsamex S.A., que recebeu 32 milhões de euros para construir uma estrada de 43 km de extensão. Por fim, quando falam em melhorar os serviços públicos, esses doadores cogitam transformar o Haiti na primeira ‘nação totalmente wirelles’ do Caribe, uma empreitada que será levada a cabo pela empresa de Bradley Horwitz.
A indústria da Cheia
De fato, seria inconcebível fazer uma transposição rasa da conjuntura haitiana para a realidade de Alagoas. Entretanto, acreditar que os recursos a serem enviados a Alagoas após as enchentes de 19 de junho irão transformar o estado num “território totalmente wirelles” é tão improvável quanto acreditar que eles vão realmente chegar às mãos das mais de 177 mil vítimas das chuvas.
Para os desavisados, é bom não esquecer que estamos tratando de um estado onde há não menos de cinco anos foi deflagrada pela Polícia Federal a Operação Gabiru, responsável pela prisão de 31 pessoas, entre elas oito prefeitos, quatro ex-prefeitos, secretários municipais e empresários, suspeitas de desviar dinheiro destinado à merenda escolar e lavagem de dinheiro. Todos os prefeitos foram soltos e muitos continuam a frente de cargos públicos.
Mas não é só na baixa política que a corrupção se alastra em Alagoas. Dois dos atuais senadores alagoanos também estiveram envolvidos em escândalos políticos. Renan Calheiros viu seu nome ligado a uma série de denúncias de desvio de dinheiro público no ano de 2007, no que ficou conhecido como Caso Renangate. Corrupção e desvio de verbas públicas também foram os motivos do impeachment de Fernando Collor de Mello quando era presidente da república em 1992.
Diante desse quadro, aumentam as possibilidades de que se repita em Alagoas o que ocorreu em outros estados do Nordeste no primeiro semestre de 2009, quando fortes chuvas provocaram enchentes em diversos estados da região, atingindo principalmente Maranhão, Piauí e Ceará. Mais de 1 milhão e 300 mil pessoas foram afetadas, sendo que 450 mil ficaram desalojadas e desabrigadas.
Como relatou naquela ocasião Hortência Mendes, pedagoga e integrante da Cáritas Regional Piauí, “se na Indústria da Seca, a seca era usada para o interesse dos políticos, agora já começa a ter uma Indústria da Cheia. Porque na hora que começa a chover todos os prefeitos dizem “Estado de Calamidade Pública”, “Estado de Emergência”, para quê? Para receber recursos do governo federal. Os recursos vem e não são aplicados”. E continua a denúncia: “Ano passado, o que nós soubemos é que o Piauí recebeu R$ 126 milhões para trabalhar com as situações de emergência causadas pelas enchentes. Em todo lugar que nós fomos, não vimos esse recurso ser aplicado. Esse ano todos os municípios estão pedindo de novo dinheiro para o Governo Federal. Mas o que vemos são as pessoas fazendo suas próprias casas, indo atrás do barro, para levantar a casa de taipa.”
Entre agasalhos e canaviais
Os exemplos do Haiti e das enchentes anteriores no nordeste evidenciam que a simples doação de agasalhos, alimentos e campanhas de solidariedade na internet servem apenas para aplacar algumas consciências e suprir as necessidades emergenciais das vítimas das catástrofes. Entretanto, nem todos os agasalhos e cestas básicas do mundo impedirão que novas chuvas caiam no ano que vem e encontrem a mesma falta de infra-estrutura nos municípios, junto com o deserto verde da cana-de-açúcar se alastrando pelas matas e margens dos rios, impedindo a captação da chuva pelo solo e aumentando o assoreamento dos rios.
Nesses momentos de catástrofe, o mais sábio seria buscar compreender e combater suas causas e não se resumir apenas a lidar com suas conseqüências. No Haiti, diante das ruínas e da dor do terremoto, diversos setores da sociedade começam a se organizar em busca de uma verdadeira reconstrução do país, que crie um outro modelo de organização política, econômica e agrária a ser levada adiante pelo povo e não a partir dos escritórios de Porto Príncipe. Um exemplo tangível para seus pares alagoanos.

Nenhum comentário: