"A dor e o sofrimento psíquicos são as resultantes desse medo amplo, geral e irrestrito promovido no imaginário coletivo pela pandemia. É preciso assim que fiquemos atentos ao lance, para não sucumbirmos pelo terror da morte", escreve Joel Birman, psicanalista, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo,02-05-2009. Segundo ele, "é preciso relativizar as supostas certezas do discurso da ciência para constituirmos formas outras de lidar com o nosso desamparo e combatermos vigorosamente as forças maléficas que nos cercam na existência social".
Eis o artigo.
Se diversas cenas sombrias sobre a gripe suína se condensam principalmente no México e nos EUA, fontes do vírus da gripe em questão, elas se internacionalizam imediatamente e começam a se alastrar com a ameaça da pandemia.
A globalização, ao nos colocar num mundo sem fronteiras, cria as vias de facilitação para tornar presente a ameaça do mal em escala internacional. É o temor da morte que se atualiza de maneira inevitável, pois para interromper as trilhas de sua transmissão necessário seria suspender o trafico aéreo internacional. O que, convenhamos, é no limite impossível, principalmente se considerarmos a existência atual da recessão econômica global. Porem, é inevitável que a economia já sofra os efeitos da pandemia, em diferentes setores das atividades produtivas. No entanto, o que está em pauta é o medo. É esse o que principalmente se dissemina, com uma rapidez infinitamente maior do que o vírus. O "apocalipse now" se inscreve no imaginário coletivo de forma inequívoca. Os temores ancestrais da ordem humana se colocam em cena, minando todos os sistemas de segurança construídos pelo longo processo civilizatório. Se não existe vacina contra o vírus da gripe A (H1N1), e o Tamiflu não é o medicamento infalível para combatê-la de maneira eficaz, os limites do discurso da ciência face ao mal absoluto se tornam evidentes para todos. Ao lado disso, as autoridades políticas orientadas pela medicina não conseguem também nos oferecer garantias para nossa segurança ontológica.
Medicalização
Foi graças à expansão do discurso da ciência e a medicalização maciça que ele promoveu do espaço social desde o final do século XVIII que passamos a acreditar que poderíamos dominar inteiramente a natureza e nos confrontarmos com o mal de maneira triunfante.
Com isso, o modelo moderno centrado na peste substituiu o modelo antigo centrado na lepra. Passamos a combater diretamente o mal com uma série de medidas sanitárias no interior do espaço social, ao invés de isolá-lo e procurar circunscrevê-lo na periferia das cidades, pela sua expulsão desterritorializante (Foucault).
O discurso bacteriológico, inventado por Louis Pasteur no século XIX, incrementou em muito a suposta eficácia do modelo da peste, multiplicando as ações da saúde publica e os controles epidemiológicos. No entanto, a pandemia é um acontecimento no limite imprevisível, apesar de o bioquímico austríaco
Norbert Bischofberger (criador do Tamiflu) afirmar que seria previsível, pois as epidemias globais aconteceriam regularmente a cada 30 ou 40 anos.
Porém o momento preciso em que a epidemia acontece é imprevisível e não pode ser antecipado rigorosamente pela ciência, nos deixando assim todos de calças curtas e aterrorizados diante da implacabilidade da morte. Isso porque, se a disseminação virótica se realizar efetivamente, como ocorreu no caso da gripe espanhola em 1918, não existiriam nem hospitais nem medicação disponíveis para todo mundo, mesmo que sejamos hoje bem mais ricos e poderosos do que no inicio do século XX. Assim, é o desamparo psíquico de todos nós que fica à flor da pele nessas situações limites e catastróficas, pois não temos com quem contar, em última instância, para nos proteger do mal. É claro que as regiões mais ricas do mundo têm mais recursos materiais e simbólicos para se confrontarem com esse do que as pobres, assim como o inverno que se aproxima no hemisfério Sul expõe ainda mais os países pobres ao risco.
Porém o desamparo nos leva todos a acreditar que estamos ameaçados por tudo e por todos, pela natureza e pelo outro. Seria o desamparo a condição concreta de possibilidade para a produção disseminada de sintomas hipocondríacos. Com efeito, qualquer mal-estar que venhamos a sentir será o signo inequívoco da presença do mal, num contexto em que ninguém pode efetivamente nos proteger.
Enfim, se a hipocondria é o sintoma produzido no sujeito quando esse supõe que não foi desejado pela mãe e a ameaça de morte é o signo infalível de que a mãe nos abandonou aos poderes da natureza, como nos ensina a psicanálise, o imaginário hipocondríaco será a moeda corrente nos tempos catastróficos da pandemia. A dor e o sofrimento psíquicos são as resultantes desse medo amplo, geral e irrestrito promovido no imaginário coletivo pela pandemia. É preciso assim que fiquemos atentos ao lance, para não sucumbirmos pelo terror da morte.
Para isso, é preciso relativizar as supostas certezas do discurso da ciência para constituirmos formas outras de lidar com o nosso desamparo e combatermos vigorosamente as forças maléficas que nos cercam na existência social.
EPIDEMIA DO LUCRO
Com as epidemias, são as transnacionais as que mais lucram: as empresas biotecnológicas e farmacêuticas que monopolizam as vacinas e os antivirais. A afirmação é de Silvia Ribeiro, pesquisadora do grupo ECT em artigopublicado no jornal mexicano La Jornada, 30-04-2009. Segundo a pesquisadora a gripe suína é parte de uma crise maior e tem as suas raízes no sistema de criação industrial de animais, dominado por grandes empresas transnacionais.Eis o artigo.A nova epidemia da gripe suína que ameaça expandir-se a outras regiões do mundo não se trata de um fenômeno isolado. É parte da crise generalizada e tem suas raízes no sistema de criação industrial de animais, dominado por grandes empresas transnacionais.No México, as grandes empresas avícolas e de suinocultura têm proliferado amplamente nas águas (sujas) do Tratado de Livre Comércio da América do Norte. Um exemplo é a Granjas Carroll, em Veracruz, propiedade de Smithfield Foods, a maior empresa de criação de porcos e processamento de produtos suínos do mundo, com filiais na América do Norte, Europa e China. Em sua sede de Perote começou faz algumas semanas uma virulenta epidemia de enfermidades respiratórias que afetou 60% da população de Glória, fato informado por La Jornada em várias oportunidades a partir das denúncias dos habitantes do local, que faz alguns anos levam uma dura luta contra a contaminação da empresa e tem sofridos inclusive repressão das autoridades por suas denúncias. Granjas Carrol declarou que não tem responsabilidade pela atual epidemia, alegando que a população sofria de uma gripe “comum”. Por via das dúvidas, não fizeram análises para saber exatamente de que vírus se tratava.Em contraste, as conclusões do Painel Pew Commission on Industrial Farm Animal Production (Comissão Pew sobre produção animal industrial), publicado em 2008, afirmam que as condições de criação e confinamento da produção industrial, sobretudo em porcos, criam um ambiente perfeito para a recombinação de vírus. Inclusive mencionam o perigo da recombinação da gripe aviária e a suína e como finalmente podem chegar a recombinar-se no vírus que afetam e são transmitidos entre humanos. Mencionam também que por muitas vias, incluindo a contaminação de águas, pode chegar a localidades longínquas, sem aparente contato direto. Um exemplo que se pode apresentar é o surgimento da gripe aviária. Veja por exemplo, o informe da GRAIN que ilustra como a indústria avícola criou a gripe aviária (www.grain.org).Mas as respostas oficiais diante da crise atual, além de tardia (esperaram que os Estados Unidos anunciassem primeiro o surgimento do novo vírus, perdendo dias valiosos para combater a epidemia), parecem ignorar as causas reais e mais contundentes.Mas do que enviar cepas do vírus para seu seqüenciamento genomico a cientistas como
Craig Venter, que enriqueceu com a privatização da pesquisa e seus resultados (seqüenciamento que já foi objeto de investigações públicas do Centro de Prevenção de Doenças em Atlanta, Estados Unidos), o que é preciso é entender que este fenômeno vai continuar se repetindo enquanto continuem os criadouros dessas doenças.E na epidemia, são as transnacionais as que mais lucram: as empresas biotecnológicas e farmacêuticas que monopolizam as vacinas e os antivirais. O governo anunciou que tinha um milhão de doses de antígenos para atacar a nova cepa da gripe suínas, mas nunca informou a que custo.Os únicos antivirais que ainda têm ação contra o novo vírus estão patenteados na maior parte do mundo e são de propriedade das grandes empresas farmacêuticas: zanamivir, com o nome comercial Relenza, comercializado por GlaxoSmithKline, e oseltamivir, cuja marca comercial é Tamiflu, patenteado por Gilead Sciences, licenciado exclusivamente para a Roche. Glaxo e Roche são a segunda e a quarta empresas farmacêuticas em escala mundial e, que igualmente ao restante de seus fármacos, as epidemias são as suas melhores oportunidades de negócio.Com a gripe aviária, todas elas obtiveram centenas de milhões de dólares de lucro. Com o anúncio da nova epidemia no México, as ações da Gilead subiram 3%, as da Roche 4% e as de Glaxo, 6% e isto é apenas o começo. Outra empresa que está atrás desse grande negócio é a Baxter, que solicitou mostras do novo vírus e anunciou que poderá ter a vacina em 13 semanas. Não precisamos enfrentar apenas a epidemia do vírus, mas também a do lucro.
A LÓGICA FINANCEIRA DAS PANDEMIAS
"As indústrias produtoras de medicamentos têm-se "recusado a aceitar a proposta da Organização Mundial de Saúde de receber, do único país que o conseguiu isolar, o vírus que transmite a gripe aviária de ser humano para ser humano - em troca do direito de aquele país fabricar a vacina (que ainda não existe) sem pagar royalties. Enquanto isso, o mundo corre o risco de uma pandemia", escreve Washington Novaes, jornalista, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 01-05-2009. Comentando a devastação das florestas, o jornalista afirma que "não temos por que nos espantar diante de quadros dramáticos, que estão na rotina brasileira também e são fruto dessas posturas comandadas basicamente por lógicas apenas financeiras. E que ainda determinam negativas como a de empresas que não aceitam fabricar vacinas se todos não pagarem por elas".
Eis o artigo.
Pois é. Está aí o mundo diante do risco de pandemia, a partir do surto de gripe suína no México, mas já com manifestações nos Estados Unidos e na Europa - e, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), sem vacinas eficazes para imunizar seres humanos contra esse vírus capaz de passar de pessoa para pessoa. Remete de volta a 1998, quando, em artigo publicado neste espaço, sob o título As novas armadilhas (24/4/98), relembrava-se que a primeira pandemia da era moderna, a gripe espanhola, em 1918, atingira um quarto da população mundial de então, que era de 1,8 bilhão de pessoas, e matara 21 milhões. A segunda pandemia, a "gripe asiática" de 1957, atingira 17% da população de quase 3 bilhões e matara 1 milhão - embora já existissem vacinas. A terceira, a "gripe de Hong Kong", pouco depois, chegara a 8% da população e provocara a morte de 700 mil pessoas. Mas com a diferença de que a gripe espanhola, levada por soldados na 1ª Guerra Mundial, em trens, precisara de quatro meses para se espalhar pelo mundo; hoje, com centenas de milhões de pessoas cruzando as fronteiras de seus países a cada ano, os vírus, transportados por navios e aviões, podem espalhar o problema pelo planeta em quatro dias.
Há mais de uma década o cientista George J. Armelagos, da Emory University, da Geórgia (EUA), já advertia que nessa "terceira transição epidemiológica" a situação é muito mais complicada. Na primeira, há 10 mil anos, quando o ser humano deixou a vida nômade - em que só enfrentava parasitas e fungos - pelo pastoreio e pela agricultura, viu-se às voltas com o tifo, a esquistossomose, a tuberculose, o antraz, a doença do sono. Depois, nas cidades, vieram a peste bubônica, a raiva, o sarampo e a varíola, em parte por causa do contato com ratos e outros animais. As vacinas e os antibióticos, já na segunda metade do século XX, caracterizam a segunda transição. E a nova transição veio com a ebola, a hepatite e outras doenças "favorecidas pela urbanização, pela remoção de florestas, pelo aquecimento global". A malária, a dengue e outras enfermidades causadas por insetos privados de seu hábitat fazem parte do problema. A proliferação de vírus e bactérias, trocas genéticas, o surgimento de espécies mais resistentes, outra parte, que inclui agentes transportados em alimentos e frutas no comércio internacional.
Talvez já se pudesse estar em situação menos grave. Como se registrou neste espaço no artigo A quem pertence o conhecimento? (1º/8/2008), as indústrias produtoras de medicamentos têm-se "recusado a aceitar a proposta da Organização Mundial de Saúde de receber, do único país que o conseguiu isolar, o vírus que transmite a gripe aviária de ser humano para ser humano - em troca do direito de aquele país fabricar a vacina (que ainda não existe) sem pagar royalties. Enquanto isso, o mundo corre o risco de uma pandemia".
Inermes diante desse quadro, vamos vendo - para só ficar nos tempos mais recentes - o vírus Ebola chegar às Filipinas e dizimar as criações de porcos (dezembro de 2008). A OMS declarar que "a gripe aviária está longe de encerrada", ainda que os focos tenham diminuído em 2008. Mas ainda causou a morte de 31 pessoas. Ao todo, já havia 250 vítimas, das quais 115 na Indonésia.
Neste ano, o Nepal teve de abater 23 mil frangos e patos. O Vietnã alertou sobre "uma possível epidemia de gripe aviária". O Egito registrou sua 56ª morte. O Japão abateu 260 mil codornas por causa de um segundo foco. As esperanças ficaram depositadas numa descoberta anunciada por cientistas japoneses, de uma vacina contra mutações da gripe aviária resistente ao medicamento Tamiflu, testada em ratos, mas que ainda levará anos para se tornar utilizável por humanos. Também nos Estados Unidos cientistas anunciaram ter produzido anticorpos para várias linhagens da gripe aviária - mas os testes clínico só serão realizados em 2011 ou 2012. Ou seja, ainda estamos desprotegidos.
No último dia 26, este jornal publicou artigo de seu correspondente na França, Gilles Lapouge, ressaltando que "pássaros, peixes, mamíferos, insetos e flores vindos do outro lado do mundo" estão "cobrindo as paisagens da Europa, semeando a discórdia, a desordem, a morte". Segundo o Delivering Alien Invasive Species Inventories for Europe, nada menos que 10.992 espécies invadiram a Europa desde 2002. Entre elas, o ratão-do-banhado, que transmite leptospirose. E o lagostim da Louisiana, o mexilhão-zebra, a truta de arroio, o bernache (pato selvagem), o biguá. E os prejuízos já são de dezenas de bilhões de euros. Além deles, outras aves transportam nos intestinos ou na plumagem pólen e sementes, que se vão disseminar. Assim como seres estranhos aos novos hábitats. Vermes. Fungos.
Lapouge conclui dizendo, apropriadamente, que "antigamente as migrações de plantas ou animais eram lentas. O planeta tinha tempo de integrá-los, assimilando as espécies boas ou eliminando as nocivas. Hoje, o ritmo dessas transferências se tornou tão rápido que o globo não consegue mais acompanhá-las".
De certa forma, o problema conhecido: continuamos a perder 12 mil km2 de florestas tropicais por ano, diz a ONU; por uso excessivo ou inadequado, 60 mil km2 de terras entram em processo de desertificação a cada ano; consumimos recursos naturais quase 30% além do que a biosfera planetária pode repor. Aqui, a Amazônia continua a perder milhares de quilômetros quadrados por ano. O Cerrado, 22 mil km2. Em cada lugar, espécies são expulsas, saem em busca de novos hábitats.
Portanto, não temos por que nos espantar diante de quadros dramáticos, que estão na rotina brasileira também e são fruto dessas posturas comandadas basicamente por lógicas apenas financeiras. E que ainda determinam negativas como a de empresas que não aceitam fabricar vacinas se todos não pagarem por elas.