ESTATIZAR O SISTEMA FINANCEIRO, PARECE SER UMA ALTERNATIVA PARA A CRISE FINANCEIRA GLOBAL: O PROBLEMA, É QUEM VAI PAGAR A CONTA DE TUDO ISSO ?
Crise legitima comando do Estado sobre sistema financeiro
“Tanto o governo FHC quanto o de Lula fizeram acordo com os bancos”, afirma Fernando Ferrari, presidente da Associação Keynesiana Brasileira. “É dos bancos, não da sociedade o controle do BC”, diz ele. “Ao mesmo tempo, criou-se uma burocracia monetarista impermeável às exigências do desenvolvimento” emenda o economista gaúcho em conversa com Carta Maior, 25-02-2009,
“Tanto o governo FHC quanto o de Lula fizeram acordo com os bancos”, afirma Fernando Ferrari, presidente da Associação Keynesiana Brasileira. “É dos bancos, não da sociedade o controle do BC”, diz ele. “Ao mesmo tempo, criou-se uma burocracia monetarista impermeável às exigências do desenvolvimento” emenda o economista gaúcho em conversa com Carta Maior, 25-02-2009,
Refundar a governança econômica para além da ruína financeira global - é disso que se trata hoje - requer marcos históricos distintos dos cercamentos ideológico que até agora delimitavam as tímidas diferenças entre projetos de desenvolvimento. O elo comum entre eles, assim como entre 29 e 2009, segundo o economista Fernando Ferrari, presidente da Associação Keynesiana Brasileira, era a subordinação política à agenda da auto-regulação dos mercados. Seu fracasso coloca na ordem do dia o comando permanente do Estado sobre o sistema financeiro.
Eis o diálogo.
Talvez o elo mais importante entre a crise atual e a de 29 esteja no seu DNA político, não no leque de dinâmicas e desdobramentos específicos a cada época. Ao contrário de trazer algum conforto, esse diagnóstico pode ser tão devastador para os oráculos do Estado mínimo – e para governantes que mal ou bem ainda se movem nos limites dessa ideologia - quanto a derrocada financeira em marcha.
Um a um, todos os principais ícones financeiros erguidos pelo livre mercado americano e europeu no pós-guerra tombam ou balançam perigosamente. Como um imenso João-bobo, eles já não conseguem mais ancorar a ordem mundial, tampouco oferecer um horizonte de previsibilidade ao cálculo econômico, sequer esboçar uma esperança de futuro à sociedade.
Citigroup, Bank of America, Loyds Bank, Morgan. Uma vistosa coleção de grifes e logos em aço escovado, como manda o "bom gosto" dos money center banks – conjunto de grandes instituições que formam (?) o comando mundial das finanças e dos mercados - vai derretendo com rapidez que desconcerta. E desconcerta porque é a ideologia das classes dominantes que derrete bruscamente. Seu esfarelamento põe a nu a fraude de um liberalismo colegial repetido à exaustão por vulgarizadores na mídia nas últimas décadas.
”Quando foi que imaginamos que estaríamos um dia discutindo a estatização de bancos - americanos?” A pontuação perplexa ilustrou o estado de espírito da presidente da Câmara dos EUA, a democrata Nancy Pelosi, em recente entrevista à TV de seu país. A mesma perplexidade explica por que Obama pedala eufemismos no ar, enquanto a insolvência bancária clama por um plano de estatização amplo e reordenador de toda a economia. O capital próprio de grandes instituições que o Tesouro ainda tenta preservar é inferior ao prejuízo que carregam com ativos podres. Um contador rude diria que elas valem menos do que devem; para ser mais exato: não valem nada. Os símbolos, porém, em muitos casos valem tanto quanto a força que representam na sociedade. A estatização de alguns money center banks consagraria a maior derrota ideológica do capitalismo no pós-guerra. É disso que Obama foge, como o diabo da cruz.
O elo comum a 29 e 2009 é a precedência de um ciclo político de hegemonia do livre mercado.
“A matriz comum às duas maiores crises do capitalismo – a de 29 e a atual - converge para o mesmo arrimo ideológico; nos dois casos o colapso foi antecedido de ciclos de confiança irrestrita na capacidade de auto-regulação dos mercados, com rejeição absoluta ao papel do Estado na construção da economia e da sociedade”.
A radiografia vem de um observador privilegiado do impasse financeiro, o economista gaúcho Fernando Ferrari; além de professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ferrari ocupa a presidência da Associação Keynesiana Brasileira, criada em abril do ano passado.
Antes do Carnaval – é preciso registrar o calendário quando os dias alcançam a densidade de anos - Ferrari conversou por telefone com Carta Maior.
Ao destacar o ventre único da ideologia liberal entre os dois acontecimentos, o economista keynesiano não oferece um diagnóstico acadêmico descomprometido de iniciativas urgentes. Ao contrário, o que ele aponta é o núcleo duro de uma inércia conservadora que, no seu entender, figura como principal obstáculo para um enfrentamento à altura da crise. Estados, governantes e partidos (mesmo os progressistas) que não vencerem esse Rubicão correm o risco de assumir uma atitude reflexa diante do colapso financeiro, encarcerando-se na mesma prisão conceitual que o gerou.
Refundar a governança econômica para além da hegemonia financista – é disso que se trata - requer marcos regulatórios que transcendem as salvaguardas de natureza ‘técnica’ dentro das quais Bush, Paulson e Bernank tentaram inicialmente equacionar o problema. Excedem, igualmente, o horizonte das perplexidades e hesitações ideológicas com as quase se debatem agora Obama, Merkel e Gordon Borwn, apenas para citar governantes ricos. E, afinal, extrapolem os mourões de um cercamento ideológico subitamente envelhecido que delimitava o ambiente convexo das tímidas diferenças entre projetos de desenvolvimento até agora.
Keynes prescrevia um regime duro de repressão estatal sobre o capital financeiro.
O fato é que diagnósticos e respostas formulados hoje vão condicionar os projetos em disputa no Brasil de 2010.
É nesse horizonte que a Associação Keynesiana Brasileira, presidida por Ferrari, adquire a relevância de um contraponto teórico e político ao crepúsculo de um arcabouço que trincou irremediavelmente. Keynes, é bom que se diga, não era um bolchevique. Tampouco o keynesianismo deve ser confundido com um socialismo acanhado. Mas o ecumênico professor de Cambridge, que fez fortuna no mercado e formava com a bailarina russa Lydia Lopokova um casal improvável, exceto para os que compartilhavam com eles a convivência no iconoclasta grupo de Bloomsbury, da Inglaterra dos anos 20 e 30, também não personificava o servidor obsequioso do capital.
Do ponto de vista filosófico, Keynes figurava como uma personalidade híbrida permeável às ambigüidades de seu tempo. Dois mundos cruzaram o mesmo espaço histórico no momento em que ele construía seu arcabouço de referências intelectuais: a velha ordem colonial em derretimento e o capitalismo monopolista em ascensão, com seu corolário financeiro hegemônico. Sem nunca ter sido um marxista, adepto dos valores liberais clássicos, Keynes identificou na fricção descontrolada entre essas massas de forças econômicas algo que mais uma vez se escancara nos dias de hoje: a impossível convivência entre valores compartilhados da civilização e a lei da selva do capitalismo ‘auto-regulável’, especialmente na sua esfera financeira.
É nesse sentido que a obra de Keynes ainda tem algo a dizer ao medo e aos impasses atuais. O autor de Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda prescrevia para o capital financeiro um regime duro de repressão estatal. Um requisito, no seu entender, para proteger os cidadãos, entre outros riscos, daquele associado ao que denominava como “obsessão mórbida pela liquidez”.
Nada do que façam ou já fizeram terá tanto impacto quanto as respostas dos governantes à crise.
A turbulência dos últimos meses ensina mais sobre a economia e o capitalismo do que bibliotecas inteiras da gororoba monetarista vendida pelos jornais nos últimos 30 anos. Nisso ela se presta como um show-room das barbáries permitidas em nome do livre mercado. A preferência mórbida pela liquidez, que desloca recursos econômicos da esfera produtiva para a especulação, é uma delas. Na ‘bonança’ recente, fundos hedge fixavam em 25% ao ano o retorno do capital parasitário induzindo assim a uma espiral de adesões urbi e orbe em diferentes versões ( downsinzing, reengenharia produtiva; privatizações; corte na ‘gastança social’; extinção de direitos trabalhistas; demonização da esquerda e dos sindicatos etc etc etc)
Na reversão pânica do ciclo o mundo sufoca enquanto a auto-regulação expele golfadas de descontrole e demissões em massa. Substituir imperativamente os pólos desse pêndulo é um requisito para seccionar os canais de transmissão que originam e realimentam a dinâmica da entropia.
Essa é a tarefa mais importante dos governantes nesse momento, na opinião do economista Fernando Ferrari.
Nada do que façam ou já fizeram terá tanto impacto quanto as respostas que derem a esse desafio. A depender do que venham a decidir passarão para a História como estadistas – caso de Roosevelt, nos anos 30; ou como poeira da humanidade, caso de seu antecessor, Herbert Hoover que manteve fidelidade ao livre mercado quando este se dissolvia arrastando para o fundo toda sociedade.
Se o pânico continuar a dividir o comando da economia com a inércia, predominará a espiral declinante descrita com propriedade por um insuspeito ex-ministro da ditadura: “as fábricas não produzem, os consumidores não compram, os bancos não emprestam. É a deriva.
Há nuances porém que escapam por entre a neblina de um aparente consenso em torno da crise. A natureza e o calendário da intervenção estatal sobre o sistema financeiro é uma delas. “Há o keynesianismo cínico”, adverte Ferrari em relação aos que hoje abrem reuniões de fundos especulativos com o mantra: somos todos keynesianos. “E há um diagnóstico e uma prescrição abrangentes que inclui o controle do sistema financeiro pelo Estado. Esse é o keynesiansimo que nunca vai ao ar nas TVs, nem frequenta as manchetes dos jornais”, diz ele,
A principal diferença é que o primeiro avalia o colapso atual como um tropeço fora da curva na longa marcha para liberação dos mercados e do capital. “Na base do pensamento de Keynes”, contrapõe Ferrari, “está a idéia de que o capitalismo é intrinsecamente instável; ele conduz a crises periódicas devastadoras, razão pela qual é imprescindível a coordenação pública da economia. Esse deve ser um traço permanente da sociedade; não uma bóia para as horas de aperto”.
Brasil tem a segunda maior representação do mundo em congressos keynesianos.
A crença de que os economistas neoliberais compõem a força-tarefa mais credenciada para conduzir o crescimento, ademais de formarem a filiação majoritária na vida acadêmica, é outra fraude midiática posta em xeque pela crise, segundo Ferrari.
“Pegue o Jornal Nacional”, desafia o presidente da Associação Keynesiana Brasileira. “Quando é que entrevistaram um economista que não fosse, de fato, adepto da supremacia dos mercados desregulados? ”, argüi para responder em seguida. “Vendeu-se e ainda se vende a versão de um consenso que não condiz com os interesses da sociedade, nem com o que se passa na academia”.
Segundo Ferrari, nos congressos keynesianos bianuais, por exemplo, realizados nos EUA, a segunda maior delegação do mundo, depois da anfitriã, é a dos economistas brasileiros. “Não se trata de uma referência numérica; nossas pesquisas e nossos teóricos são reconhecidos pela qualidade e a relevância política do que produzem”, defende.
A hegemonia ortodoxa alimentada pela mídia tem na máquina do Estado outra pata de apoio de garras afiadas.
O caso mais ilustrativo, de acordo com Ferrari, é o bunker estratégico e conceitual instalado no BC de Henrique Meirelles. “Como é que o país chegou a essa aberração autista”, observa, “de submeter a produção a uma taxa de juro que agrava a crise e contraria tudo o que se busca no resto do mundo?”
A maior evidência desse paradoxo pode ser pinçada em números fornecidos pelos próprios boletins do BC. Hoje, bancos e fundos de investimentos têm mais de R$ 340 bilhões aplicados em operações de curtíssimo prazo. São recursos ariscos, movidos pela lógica rentista, que poderiam assumir a forma de créditos de longo curso para gerar infra-estrutura, ampliar a oferta e multiplicar empregos.
O próprio Banco Central, porém, se oferece como válvula de escape a esse entesouramento especulativo. Antes da crise, o BC retirava da economia cerca de R$ 30 bilhões por dia vendendo títulos do Tesouro; hoje são R$ 100 bilhões por dia. Dinheiro remunerado a 12,75% sem ‘produzir um só botão”, como afirma o Presidente Lula, o que diz mais sobre a resistência para baixar a Selic do que toda a tinta ortodoxa gasta em defesa ‘das metas de inflação’.
Concurso para vagas no BC exige mestrado em usinas do pensamento neoliberal
“Isso acontece, em primeiro lugar, porque tanto o governo FHC quanto o de Lula fizeram acordo com os bancos”, dispara Ferrari. “É dos bancos, não da sociedade o controle do BC”, continua atirando. “Ao mesmo tempo, criou-se uma burocracia monetarista impermeável às exigências do desenvolvimento” emenda o economista gaúcho que não hesita em dar o caminho das pedras ortodoxas.
“Essa impermeabilidade é garantida por editais”, denuncia. “Os concursos para preenchimento de vagas no BC brasileiro exigem - pelo menos não tenho notícia de que isso tenha mudado - título de mestrado nos EUA. E não em quaisquer centro. O BC só aceita egressos das usinas de reprodução do pensamento neoliberal sediadas em Chicago, Princeton e Pensilvânia”, denuncia para alfinetar em seguida: “Não deixa de ser curioso que a mídia faça tanto escândalo quando o Ipea esboça critérios distintos em seus concursos; ela sempre guardou silêncio obsequioso diante da indução política imposta pelo BC”.
Embora critique de forma dura a política econômica do governo Lula, Ferrari distingue dois momentos num processo evolutivo: “antes e depois de Palocci, quando houve uma guinada”. Ao mesmo tempo, o presidente da Associação Keynesiana Brasileira lança um desafio e assume um compromisso público: “Darei o braço a torcer definitivamente quando o governo tiver a coragem de romper com a política de superávits primários. Essa esterilização de recursos, ao lado das taxas de juros, sabota a capacidade de resposta diante da crise”
Talvez o elo mais importante entre a crise atual e a de 29 esteja no seu DNA político, não no leque de dinâmicas e desdobramentos específicos a cada época. Ao contrário de trazer algum conforto, esse diagnóstico pode ser tão devastador para os oráculos do Estado mínimo – e para governantes que mal ou bem ainda se movem nos limites dessa ideologia - quanto a derrocada financeira em marcha.
Um a um, todos os principais ícones financeiros erguidos pelo livre mercado americano e europeu no pós-guerra tombam ou balançam perigosamente. Como um imenso João-bobo, eles já não conseguem mais ancorar a ordem mundial, tampouco oferecer um horizonte de previsibilidade ao cálculo econômico, sequer esboçar uma esperança de futuro à sociedade.
Citigroup, Bank of America, Loyds Bank, Morgan. Uma vistosa coleção de grifes e logos em aço escovado, como manda o "bom gosto" dos money center banks – conjunto de grandes instituições que formam (?) o comando mundial das finanças e dos mercados - vai derretendo com rapidez que desconcerta. E desconcerta porque é a ideologia das classes dominantes que derrete bruscamente. Seu esfarelamento põe a nu a fraude de um liberalismo colegial repetido à exaustão por vulgarizadores na mídia nas últimas décadas.
”Quando foi que imaginamos que estaríamos um dia discutindo a estatização de bancos - americanos?” A pontuação perplexa ilustrou o estado de espírito da presidente da Câmara dos EUA, a democrata Nancy Pelosi, em recente entrevista à TV de seu país. A mesma perplexidade explica por que Obama pedala eufemismos no ar, enquanto a insolvência bancária clama por um plano de estatização amplo e reordenador de toda a economia. O capital próprio de grandes instituições que o Tesouro ainda tenta preservar é inferior ao prejuízo que carregam com ativos podres. Um contador rude diria que elas valem menos do que devem; para ser mais exato: não valem nada. Os símbolos, porém, em muitos casos valem tanto quanto a força que representam na sociedade. A estatização de alguns money center banks consagraria a maior derrota ideológica do capitalismo no pós-guerra. É disso que Obama foge, como o diabo da cruz.
O elo comum a 29 e 2009 é a precedência de um ciclo político de hegemonia do livre mercado.
“A matriz comum às duas maiores crises do capitalismo – a de 29 e a atual - converge para o mesmo arrimo ideológico; nos dois casos o colapso foi antecedido de ciclos de confiança irrestrita na capacidade de auto-regulação dos mercados, com rejeição absoluta ao papel do Estado na construção da economia e da sociedade”.
A radiografia vem de um observador privilegiado do impasse financeiro, o economista gaúcho Fernando Ferrari; além de professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ferrari ocupa a presidência da Associação Keynesiana Brasileira, criada em abril do ano passado.
Antes do Carnaval – é preciso registrar o calendário quando os dias alcançam a densidade de anos - Ferrari conversou por telefone com Carta Maior.
Ao destacar o ventre único da ideologia liberal entre os dois acontecimentos, o economista keynesiano não oferece um diagnóstico acadêmico descomprometido de iniciativas urgentes. Ao contrário, o que ele aponta é o núcleo duro de uma inércia conservadora que, no seu entender, figura como principal obstáculo para um enfrentamento à altura da crise. Estados, governantes e partidos (mesmo os progressistas) que não vencerem esse Rubicão correm o risco de assumir uma atitude reflexa diante do colapso financeiro, encarcerando-se na mesma prisão conceitual que o gerou.
Refundar a governança econômica para além da hegemonia financista – é disso que se trata - requer marcos regulatórios que transcendem as salvaguardas de natureza ‘técnica’ dentro das quais Bush, Paulson e Bernank tentaram inicialmente equacionar o problema. Excedem, igualmente, o horizonte das perplexidades e hesitações ideológicas com as quase se debatem agora Obama, Merkel e Gordon Borwn, apenas para citar governantes ricos. E, afinal, extrapolem os mourões de um cercamento ideológico subitamente envelhecido que delimitava o ambiente convexo das tímidas diferenças entre projetos de desenvolvimento até agora.
Keynes prescrevia um regime duro de repressão estatal sobre o capital financeiro.
O fato é que diagnósticos e respostas formulados hoje vão condicionar os projetos em disputa no Brasil de 2010.
É nesse horizonte que a Associação Keynesiana Brasileira, presidida por Ferrari, adquire a relevância de um contraponto teórico e político ao crepúsculo de um arcabouço que trincou irremediavelmente. Keynes, é bom que se diga, não era um bolchevique. Tampouco o keynesianismo deve ser confundido com um socialismo acanhado. Mas o ecumênico professor de Cambridge, que fez fortuna no mercado e formava com a bailarina russa Lydia Lopokova um casal improvável, exceto para os que compartilhavam com eles a convivência no iconoclasta grupo de Bloomsbury, da Inglaterra dos anos 20 e 30, também não personificava o servidor obsequioso do capital.
Do ponto de vista filosófico, Keynes figurava como uma personalidade híbrida permeável às ambigüidades de seu tempo. Dois mundos cruzaram o mesmo espaço histórico no momento em que ele construía seu arcabouço de referências intelectuais: a velha ordem colonial em derretimento e o capitalismo monopolista em ascensão, com seu corolário financeiro hegemônico. Sem nunca ter sido um marxista, adepto dos valores liberais clássicos, Keynes identificou na fricção descontrolada entre essas massas de forças econômicas algo que mais uma vez se escancara nos dias de hoje: a impossível convivência entre valores compartilhados da civilização e a lei da selva do capitalismo ‘auto-regulável’, especialmente na sua esfera financeira.
É nesse sentido que a obra de Keynes ainda tem algo a dizer ao medo e aos impasses atuais. O autor de Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda prescrevia para o capital financeiro um regime duro de repressão estatal. Um requisito, no seu entender, para proteger os cidadãos, entre outros riscos, daquele associado ao que denominava como “obsessão mórbida pela liquidez”.
Nada do que façam ou já fizeram terá tanto impacto quanto as respostas dos governantes à crise.
A turbulência dos últimos meses ensina mais sobre a economia e o capitalismo do que bibliotecas inteiras da gororoba monetarista vendida pelos jornais nos últimos 30 anos. Nisso ela se presta como um show-room das barbáries permitidas em nome do livre mercado. A preferência mórbida pela liquidez, que desloca recursos econômicos da esfera produtiva para a especulação, é uma delas. Na ‘bonança’ recente, fundos hedge fixavam em 25% ao ano o retorno do capital parasitário induzindo assim a uma espiral de adesões urbi e orbe em diferentes versões ( downsinzing, reengenharia produtiva; privatizações; corte na ‘gastança social’; extinção de direitos trabalhistas; demonização da esquerda e dos sindicatos etc etc etc)
Na reversão pânica do ciclo o mundo sufoca enquanto a auto-regulação expele golfadas de descontrole e demissões em massa. Substituir imperativamente os pólos desse pêndulo é um requisito para seccionar os canais de transmissão que originam e realimentam a dinâmica da entropia.
Essa é a tarefa mais importante dos governantes nesse momento, na opinião do economista Fernando Ferrari.
Nada do que façam ou já fizeram terá tanto impacto quanto as respostas que derem a esse desafio. A depender do que venham a decidir passarão para a História como estadistas – caso de Roosevelt, nos anos 30; ou como poeira da humanidade, caso de seu antecessor, Herbert Hoover que manteve fidelidade ao livre mercado quando este se dissolvia arrastando para o fundo toda sociedade.
Se o pânico continuar a dividir o comando da economia com a inércia, predominará a espiral declinante descrita com propriedade por um insuspeito ex-ministro da ditadura: “as fábricas não produzem, os consumidores não compram, os bancos não emprestam. É a deriva.
Há nuances porém que escapam por entre a neblina de um aparente consenso em torno da crise. A natureza e o calendário da intervenção estatal sobre o sistema financeiro é uma delas. “Há o keynesianismo cínico”, adverte Ferrari em relação aos que hoje abrem reuniões de fundos especulativos com o mantra: somos todos keynesianos. “E há um diagnóstico e uma prescrição abrangentes que inclui o controle do sistema financeiro pelo Estado. Esse é o keynesiansimo que nunca vai ao ar nas TVs, nem frequenta as manchetes dos jornais”, diz ele,
A principal diferença é que o primeiro avalia o colapso atual como um tropeço fora da curva na longa marcha para liberação dos mercados e do capital. “Na base do pensamento de Keynes”, contrapõe Ferrari, “está a idéia de que o capitalismo é intrinsecamente instável; ele conduz a crises periódicas devastadoras, razão pela qual é imprescindível a coordenação pública da economia. Esse deve ser um traço permanente da sociedade; não uma bóia para as horas de aperto”.
Brasil tem a segunda maior representação do mundo em congressos keynesianos.
A crença de que os economistas neoliberais compõem a força-tarefa mais credenciada para conduzir o crescimento, ademais de formarem a filiação majoritária na vida acadêmica, é outra fraude midiática posta em xeque pela crise, segundo Ferrari.
“Pegue o Jornal Nacional”, desafia o presidente da Associação Keynesiana Brasileira. “Quando é que entrevistaram um economista que não fosse, de fato, adepto da supremacia dos mercados desregulados? ”, argüi para responder em seguida. “Vendeu-se e ainda se vende a versão de um consenso que não condiz com os interesses da sociedade, nem com o que se passa na academia”.
Segundo Ferrari, nos congressos keynesianos bianuais, por exemplo, realizados nos EUA, a segunda maior delegação do mundo, depois da anfitriã, é a dos economistas brasileiros. “Não se trata de uma referência numérica; nossas pesquisas e nossos teóricos são reconhecidos pela qualidade e a relevância política do que produzem”, defende.
A hegemonia ortodoxa alimentada pela mídia tem na máquina do Estado outra pata de apoio de garras afiadas.
O caso mais ilustrativo, de acordo com Ferrari, é o bunker estratégico e conceitual instalado no BC de Henrique Meirelles. “Como é que o país chegou a essa aberração autista”, observa, “de submeter a produção a uma taxa de juro que agrava a crise e contraria tudo o que se busca no resto do mundo?”
A maior evidência desse paradoxo pode ser pinçada em números fornecidos pelos próprios boletins do BC. Hoje, bancos e fundos de investimentos têm mais de R$ 340 bilhões aplicados em operações de curtíssimo prazo. São recursos ariscos, movidos pela lógica rentista, que poderiam assumir a forma de créditos de longo curso para gerar infra-estrutura, ampliar a oferta e multiplicar empregos.
O próprio Banco Central, porém, se oferece como válvula de escape a esse entesouramento especulativo. Antes da crise, o BC retirava da economia cerca de R$ 30 bilhões por dia vendendo títulos do Tesouro; hoje são R$ 100 bilhões por dia. Dinheiro remunerado a 12,75% sem ‘produzir um só botão”, como afirma o Presidente Lula, o que diz mais sobre a resistência para baixar a Selic do que toda a tinta ortodoxa gasta em defesa ‘das metas de inflação’.
Concurso para vagas no BC exige mestrado em usinas do pensamento neoliberal
“Isso acontece, em primeiro lugar, porque tanto o governo FHC quanto o de Lula fizeram acordo com os bancos”, dispara Ferrari. “É dos bancos, não da sociedade o controle do BC”, continua atirando. “Ao mesmo tempo, criou-se uma burocracia monetarista impermeável às exigências do desenvolvimento” emenda o economista gaúcho que não hesita em dar o caminho das pedras ortodoxas.
“Essa impermeabilidade é garantida por editais”, denuncia. “Os concursos para preenchimento de vagas no BC brasileiro exigem - pelo menos não tenho notícia de que isso tenha mudado - título de mestrado nos EUA. E não em quaisquer centro. O BC só aceita egressos das usinas de reprodução do pensamento neoliberal sediadas em Chicago, Princeton e Pensilvânia”, denuncia para alfinetar em seguida: “Não deixa de ser curioso que a mídia faça tanto escândalo quando o Ipea esboça critérios distintos em seus concursos; ela sempre guardou silêncio obsequioso diante da indução política imposta pelo BC”.
Embora critique de forma dura a política econômica do governo Lula, Ferrari distingue dois momentos num processo evolutivo: “antes e depois de Palocci, quando houve uma guinada”. Ao mesmo tempo, o presidente da Associação Keynesiana Brasileira lança um desafio e assume um compromisso público: “Darei o braço a torcer definitivamente quando o governo tiver a coragem de romper com a política de superávits primários. Essa esterilização de recursos, ao lado das taxas de juros, sabota a capacidade de resposta diante da crise”
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