Do novo ensaio “Conditio humana. Il rischio nell’età globale” [Condição humana. O risco na idade global] (Laterza, 416 pp.), o jornal La Repubblica, 22-09-2008, antecipou uma parte de um capítulo: A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o texto.
Ao mesmo tempo, a sociedade mundial do risco gera um “impulso cosmopolita”, por exemplo, no confronto histórico com o antigo cosmopolitismo (Stoa), com o jus cosmopoliticum do iluminismo (Kant) ou com os crimes contra a humanidade (Hannah Arendt, Karl Jaspers); os riscos globais colocam-nos em confronto com “o outro”, aparentemente excluído. Eles derrubam as fronteiras nacionais e mesclam o indígena com o estrangeiro (...).
Ambas as tendências: a reflexividade da incerteza e o impulso cosmopolita são reconduzíveis a uma meta-mudança complexiva da “sociedade” no século XXI:
a) Pondo-as em cena, as experiências e os conflitos do risco mundial compenetram e modificam os fundamentos da convivência e do agir em todos os âmbitos, em nível nacional e em nível global;
b) do risco mundial se pode deduzir a nova forma de relação com as questões abertas, o modo pelo qual o futuro é integrado no presente, que formas assumem as sociedades que efetuam a interiorização do risco, como se transformam as instituições existentes e que modelos organizacionais até agora desconhecidos são criados;
c) ora, de um lado, estão em primeiro plano os grandes riscos (indesejados), como a alteração climática; do outro, a antecipação das ameaças de novo tipo provenientes dos ataques terroristas (desejados) cria uma constante expectativa pública;
d) realiza-se uma mudança cultural geral. Nasce um novo modo de entender a natureza e sua relação com a sociedade, mas também de entender a nós e aos outros, a racionalidade social, a liberdade, a democracia e a legitimação - e até mesmo o indivíduo. (...)
O significado compreensivo do risco mundial tem conseqüências muito relevantes, já que se liga a ele todo um repertório de novas representações, temores, medos, esperanças, normas de comportamento e conflitos de fé. Estes medos têm um efeito colateral particularmente fatal: as pessoas e os grupos que se tornam (ou são feitas tornar-se) “pessoas em risco” ou “grupos em risco” são considerados como não-pessoas, cujos direitos fundamentais estão ameaçados. O risco separa, exclui, estigmatiza. Formam-se, assim, novos limites de percepção e de comunicação? Mas, ao mesmo tempo são também realizados esforços que ultrapassam os limites para resolver problemas submetidos, por primeira vez, a uma influência pública. Conseqüentemente, o colocar em cena o risco mundial dá lugar a uma produção e construção social da realidade. O risco se torna assim a causa e o meio de reconfiguração da sociedade.. E está estreitamente conexo com as novas formas de classificação, interpretação e organização de nossa vida cotidiana, com o novo modo de pôr em cena e de organizar, de viver e de configurar a sociedade em relação ao presente do futuro.
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O salto da sociedade do risco à sociedade mundial pode ser esclarecido apelando a dois testemunhos: Max Weber e John Maynard Keynes, os clássicos da sociologia e da economia modernas. Em Max Weber a lógica do controle vence no moderno confronto com o risco, e vence de modo tão irreversível que o otimismo cultural (Kulturoptimismus) e o pessimismo cultural (Kulturpessimismus) são reconhecidos como dois lados da mesma dinâmica. Por força do desdobramento e da radicalização dos princípios basilares da modernidade, e, em particular pela radicalização da racionalidade científica e econômica, impende um regime despótico como conseqüência, de um lado, do desenvolvimento da democracia moderna e, do outro, do triunfo do capitalismo orientado ao lucro. Esperança e preocupação se condicionam reciprocamente: do momento em que as incertezas e os efeitos colaterais imprevistos e indesejados, produzidos pela racionalidade do risco, não cessam de ser enfrentados “otimisticamente”, graças a um incremento da racionalização e da lógica do mercado, a preocupação de Weber não considerava – diversamente de Comte e Durkheim – a falta de ordem e integração social. Ele não temia o “caos das incertezas” (como Comte). Ao contrário, ele via e afirmava que a síntese entre ciência, burocracia e capitalismo transforma o Moderno numa espécie de “prisão”. Esta ameaça não emerge como um fenômeno marginal, mas, como conseqüência lógica da racionalização exitosa do risco: se tudo vai bem, será sempre pior. A racionalidade instrumental despolitiza a política e mina a liberdade dos indivíduos.
Ao mesmo tempo, no modelo de Max Weber está contida uma idéia que explica porque o risco se torna um fenômeno global, embora ainda não explique porque isso dá lugar à sociedade mundial do risco. Segundo Weber, a globalização do risco não está ligada ao colonialismo ou ao imperialismo, Isto é, não é levada em frente com o fogo e com a espada. Ela procede antes ao longo da via da coação não coagida do melhor argumento. A marcha triunfal da racionalização baseia-se na promessa de benefício do risco e na delimitação, por sua vez racional, dos efeitos colaterais, das incertezas e dos perigos a isso coligados. É esta auto-aplicação do risco ao risco, finalizada pelo aperfeiçoamento do autocontrole, que globaliza o “universalismo”. A idéia de que precisamente o imprevisto, o indesejado, o incalculável, o inesperado, o incerto, tornados permanentes pelo risco, possa tornar-se a fonte de possibilidades e perigos não antecipáveis, que põem seriamente em questão a idéia-guia da racionalidade do controle, é uma idéia impensável no modelo weberiano. Ela está na base da minha teoria da sociedade mundial do risco. (...).
No inicio do século XXI vemos a sociedade moderna com olhos diversos – e este nascimento de um “olhar cosmopolita” faz parte do inesperado, do qual deriva uma sociedade mundial do risco ainda indeterminada. De ora em diante, nada do que acontece é somente um evento local. Todos os perigos essenciais se tornaram perigos mundiais, a situação de cada nação, de cada etnia, de cada religião, de cada classe, de cada indivíduo em particular é também o resultado e a origem da situação da humanidade. O ponto decisivo é que, de agora em diante, a principal tarefa é a preocupação pelo todo. Não se trata de uma opção, mas da própria condição. Ninguém jamais o previu, desejou ou escolheu, mas brotou das decisões, da soma de suas conseqüências, e se tornou conditio humana. Ninguém pode subtrair-se a ela. Perfila-se, assim, uma mudança da sociedade, da política e da história, que até agora permaneceu incompreendida e que já há algum tempo indico com o conceito de “sociedade mundial do risco”. O que agora conhecemos é apenas o início.