quarta-feira, 18 de agosto de 2010

MESQUITA GROUND ZERO: RELAÇÕES COMPLEXAS E CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES ?

A polêmica que se debate há meses no coração de Manhattan agora se espalhou até se transformar em um "choque de civilizações" em nível nacional. Muitos conselheiros haviam sugerido a Obama que se mantivesse à parte: o Islã é um campo minado para esse presidente, que muitos norte-americanos de direita suspeitam ser um estrangeiro e cripto-muçulmano. Pelo contrário, Obama repudia a prudência tática e faz da mesquita um teste dos valores sobre os quais os EUA estão fundados.

A reportagem é de Federico Rampini, publicada no jornal La Repubblica, 15-08-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ele falou sobre isso justamente no jantar solene do Iftar [refeição que quebra o jejum do Ramadã], que ocorreu na Casa Branca, durante o Ramadã, durante uma centena de expoentes da comunidade islâmica norte-americana. "Entendo as emoções que estão em jogo – disse Obama –, porque o Ground Zero tornou-se um campo sagrado. Mas esta é a América, e a nossa atitude com relação à liberdade religiosa deve ser indestrutível. O princípio de que os cidadãos de todas as fés são bem-vindos entre nós é essencial para definir aquilo que somos".

Na direita, as reações são duras. Com relação à atitude com relação ao Islã, o país se divide. As pesquisas revelam que 53% dos nova-iorquinos são contrários à mesquita, e só 34% favoráveis. A oposição é ainda mais forte em nível nacional, 68% de opiniões negativas. Sarah Palin, ex-candidata a vice-presidente, fala de uma "punhalada no coração da América". Um outro líder histórico da direita, Newt Gingrich, denuncia "a timidez e a passividade das elites" diante da ameaça do fundamentalismo islâmico.

No centro do escândalo, está o projeto do Cordoba Institute, que selecionou um terreno privado a duas quadras de distância da ex-cratera das Torres Gêmeas. Com 100 bilhões de dólares de investimento, financiado pela comunidade islâmica, o Cordoba Institute construiria um edifício de 13 andares destinado a hospedar o lugar de oração, um centro cultural, além de "um memorial e um espaço de meditação consagrado ao 11 de setembro".

Antes ainda de Obama, para fazer com que o projeto avançasse, uma pessoa decisiva foi Michael Bloomberg. O prefeito de Nova York, de família judaica, fez dele uma batalha-símbolo. "Vetar a mesquita – disse – seria incoerente com a melhor parte de nós mesmos. Não é uma forma de honrar as vítimas do 11 de setembro. Os policiais e os bombeiros que acorreram aos arranha-céus em chamas não se perguntaram de que religião eram os seres humanos lá dentro".

A escolha de campo de Bloomberg tem raízes biográficas. O prefeito lembra que, na sua infância em Massachusetts, seus pais tiveram que contratar um advogado cristão como fiador para poder comprar sua casa, de tão discriminados que eram os judeus. Tendo crescido em uma minoria, Bloomberg não aceita que outros possam sofrer as mesmas intolerâncias. Ele também tem uma preocupação política. Administra uma metrópole com 100 mesquitas e uma comunidade islâmica de 700 mil pessoas, mais de um décimo de todos os muçulmanos que vivem nos EUA.

Nova York conseguiu evitar tensões étnico-religiosas depois do 11 de setembro. Essa "paz metropolitana" está em risco por causa da escalada de polêmicas sobre a mesquita do Ground Zero, que a intervenção da Casa Branca certamente não aplaca. Um dos mais notáveis intelectuais da direita, Charles Krauthammer, está indignado por causa das escolhas de Obama e Bloomberg: "No Ground Zero, foi perpetrado um massacre por obra de seguidores de uma versão particular do Islã. Construir uma mesquita ali é um sacrilégio. Não é uma questão de liberdade religiosa, é uma questão de sensibilidade. João Paulo II ordenou que as irmãs carmelitas deixassem o convento de Auschwitz por uma escolha de respeito ao lugar".

Surpreendentemente, quem também ataca Bloomberg é uma importante organização contra o antissemitismo e o racismo, a Anti-Defamation League, que pediu "prioridade aos sentimentos das famílias das vítimas". Divididas também estas: a seção de cartas do New York Times, com opiniões prós e contras em proporções iguais, é a fotografia fiel do dilema que divide os sobreviventes do 11 de setembro e os familiares sobreviventes.

O incêndio ideológico se espalha bem além de Manhattan. Em Temecula, na Califórnia, os seguidores do Tea Party (a ala ativista e intransigente da direita) profanam com cachorros o lugar onde deveria ser construída uma mesquita. Em Sheboygan, no Wisconsin, pastores protestantes entram em confronto físico com os muçulmanos. Em Murfreesboro, no Tennessee, uma manifestação acusa os islâmicos de querer substituir a Constituição dos Estados Unidos pela Sharia, a lei do Alcorão. Todos os projetos de novas mesquitas tornam-se um episódio, um foco potencial de conflito. "De repente, mudou o nível de hostilidade – observa Ishan Bagby, estudioso do Islã da Universidade do Kentucky –, uma parte da sociedade norte-americana se convenceu de que o Islã está no invadindo, ameaça os nossos valores".

Como em Nova York, em todos os EUA a contraofensiva tem protagonistas surpreendentes. Em Temecula, Larry Slusser, líder dos mórmons e que dirige o conselho inter-religioso, sai às ruas em favor da mesquita local: "São americanos, têm o direito de praticar a sua fé assim como nós".

Não importa se as pesquisas o levavam ao silêncio, a uma tática de baixo perfil, Obama sentiu a necessidade de dizer alto e forte de que lado está. Apoiando a mesquita em Ground Zero, o presidente retomou a linha do seu discurso na Universidade do Cairo, em junho de 2009, em que anunciou um novo diálogo com o Islã mundial: "A liberdade na América – disse então – é indivisível da liberdade religiosa, por isso há mesquitas em cada um dos Estados da União, mais de 1,2 mil em todo o país. O Islã faz parte da América".

Quando a direita contestou-lhe o fato de que, na Arábia Saudita, não se pode construir uma igreja, Obama respondeu: "A tolerância define a América e nos torna mais fortes". A sua aposta é no Islã moderado: o imã Feisal Abdul Rauf, o promotor da mesquita do Ground Zero, tornou-se a testemunha do governo dos EUA em todo o Oriente Médio, em missão para contar a respeito dos EUA e combater os profetas do ódio.
"Nos EUA, a liberdade é amiga da religião, qualquer que seja. Favorece e protege a sua expressão concreta, como a construção de um templo."
A opinião é de Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 15-08-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.

Neste nosso tempo secularizado, os lugares de oração às vezes causam discussões. Em Nova York, foi aprovado o projeto de uma mesquita e de um centro islâmico a dois passos do Ground Zero (nesse sábado chegou o apoio do presidente Obama). Há quem grite pela profanação do 11 de setembro, embora entre os parentes dos falecidos não haja unanimidade. Essa reação revela uma forte convicção: aquele terrível atentado deveu-se ao Islã em sentido global.
A oposição à mesquita em Lower Manhattan evidencia um problema da história dos primeiros dez anos do século XXI. O desafio islâmico ao Ocidente foi o elemento que caracterizou esse período ou se trata de uma simplificação, apesar das graves dificuldades entre o Ocidente e os muçulmanos? Com um pouco de distância cronológica do 11 de setembro, é uma discussão que deve ser totalmente retomada.
Nos EUA, porém, em novembro, irão ocorrer as eleições da metade do mandato. São sempre difíceis para um presidente. Um político é levado a seguir os humores e os medos de um eleitorado desorientado no mundo global. É um problema geral, não só norte-americano. Pelo contrário, o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, aprovou o projeto da mesquita, lembrando que abrir uma sinagoga e uma igreja católica justamente em Manhattan foi uma difícil conquista da liberdade religiosa, há dois séculos.
O presidente Obama não ficou de fora. Interveio não tanto por simpatia pelo Islã, do qual foi muitas vezes acusado. No Cairo, em junho de 2009, havia afirmado: "A América e o Islã não devem estar em competição". Palavras julgadas "politically correct", em um mundo mêmore do choque de civilizações.
Neste sábado, o presidente falou como grande líder ocidental: "Estamos nos EUA, e o nosso empenho em favor da liberdade de culto deve ser inalterável". E sublinhou com orgulho: "Esta é a América!". Lançou um desafio aos terroristas, assassinos dos muçulmanos, contestando-lhes como representantes do Islã: "Freedom" foi a palavra-chave do discurso: "Os nossos inimigos não respeitam a liberdade religiosa".
Nos EUA, a liberdade é amiga da religião, qualquer que seja. Favorece e protege a sua expressão concreta, como a construção de um templo. Obama rejeita que a liberdade religiosa seja sacrificada pelo medo a poucos passos de onde está crescendo a Freedom Tower, um santuário da memória e da dor.
Mas as questões do lugar de culto sempre são complicadas. Em tanta polêmica, surgem os cristãos ortodoxos com um pedido. A sua igreja foi destruída pela queda do World Trade Center, e ninguém se ocupa disso. Porque, no fundo, esta é Nova York: uma grande pluralidade de lugares de oração em um mundo em que a religião é vida concreta. A religião também é oração. E a oração, antes de tudo, é invocação a Deus e não ódio.

Além disso, em torno do Ground Zero, como se vê na próxima e pequena igreja episcopaliana, há uma grande necessidade de oração diante do mal cometido, na lembrança da dor e da incerteza do futuro.
Para o aclamado autor paquistanês de "O fundamentalista relutante" (Ed. Alfaguara, 2007), Mohsin Hamid, 39 anos, metade dos quais transcorridos nos EUA, o êxito do debate sobre a "mesquita da discórdia" é decisivo: "Se verdadeiramente queremos combater o terrorismo – defende –, devemos defender a ideia de igualdade, a liberdade de culto e o centro islâmico do Ground Zero".

A reportagem é de Rosalba Castelletti, publicada no jornal La Repubblica, 15-08-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.
Senhor Hamid, o que pensa sobre as argumentações dos detratores da mesquita?
Defender que construir uma mesquita a duas quadras do Ground Zero é ofensivo com relação às vítimas do 11 de setembro quer dizer culpabilizar todos os muçulmanos pelo 11 de setembro. Mas o 11 de setembro não se refere a todos os muçulmanos. Refere-se a uma organização terrorista que ataca e mata também os muçulmanos. Se considerarmos uma mesquita como uma ofensa, então só fomentaremos a equivalência entre "muçulmano" e "inimigo", como se faz todos os dias com os controles nos aeroportos ou com as prisões e os interrogatórios arbitrários.

O presidente dos EUA também reforçou isso: "A causa da Al Qaeda não é o Islã".
Assino embaixo de tudo o que Obama disse nesse sábado. Devemos reforçar a liberdade culto. E devemos fazer isso não só nos EUA, mas em todo o mundo. A liberdade de religião é um valor que deve ser promovido em ambas as direções: nos países de maioria muçulmana, como o Paquistão onde eu me encontro agora, e nos países de maioria cristã, como os EUA. Há quem se lembre de que alguns países muçulmanos não dão aos cristãos a liberdade de religião e questione por que os EUA deveriam proteger a dos muçulmanos. Eu respondo: os EUA não são a Arábia Saudita. Por que se quer copiá-la? Os EUA deveriam ser um exemplo. Devemos promover a tolerância em todos os lugares, em vez de dar passos para atrás.

Entre os inimigos da mesquita, está também a ex-candidata à vice-presidência Sarah Palin...
No século XVIII, nos EUA, se combateu a guerra civil entre o Sul e o Norte, e o Sul escravagista perdeu. Agora, está acontecendo uma coisa semelhante. Quem se confronta não são mais o Norte e o Sul, mas duas Américas: uma igualitária e outra não. A boa notícia é que, há dois anos, os EUA representados por Palin perderam, e os representados por Obama venceram. Não sei o que vai acontecer no futuro. Hoje, não há mais uma discriminação aberta contra os negros. A intolerância está procurando novas formas para se expressar e se deslocou contra os muçulmanos.

Por que justamente contra os muçulmanos? É só culpa do 11 de setembro?
O 11 de setembro permitiu que essas novas formas de discriminação se expressassem. O objetivo dos terroristas era o de pôr ocidentais contra muçulmanos, e muçulmanos integralistas contra os liberais, para que se fizesse a guerra. E é o que está acontecendo. Se não quisermos fazer o jogo dos terroristas, devemos promover um universo de valores igualitários. Devemos nos perguntar se queremos acreditar em um mundo onde a metade das pessoas faz guerra contra a outra, ou se queremos viver pacificamente. Se queremos a guerra, então devemos ser contrários à mesquita. Se queremos acreditar na humanidade, devemos defendê-la.

Quem o senhor pensa que vai vencer? Quem se foca nas divisões ou quem aposta na humanidade?
Acredito que, no futuro, as pessoas continuarão migrando, mas acredito também que encontraremos uma forma para viver juntos. A convivência será um desafio para todos, ocidentais e muçulmanos. No fim, profundamente, todos, ateus e crentes, teremos que reconhecer que os seres humanos são todos iguais. Os terroristas querem matar esse sentimento de igualdade. Nós devemos impedi-los. Seria uma pena se justamente os EUA, que são uma das nações mais liberais do mundo, mudassem de percurso.

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