Passaram-se três anos desde que o teto começou a desabar. E apenas pouco mais de um ano transcorreu desde que os mais covardes abasteceram os seus porões com água mineral e comida enlatada, temendo que o colapso financeiro pressagiasse uma derrocada rumo à anarquia. Assim sendo, o que aconteceu desde então? Simples: muito pouco. Os mercados (e os banqueiros) ainda dominam.
A reportagem é de Philip Stephens, do Financial Times, e publicada pelo jornal Valor,02-08-2010.
Lembra-se das declarações grandiosas proferidas por líderes políticos à medida que o sistema financeiro global cambaleava à beira da autodestruição? As promessas e garantias vinham da esquerda, da direita e do centro - de Gordon Brown e Barack Obama, de Angela Merckel e Nicolas Sarkozy, de bancos centrais e do Fundo Monetário Internacional.
As finanças, nos asseguravam, seriam removidas do seu pedestal dourado. A economia real reafirmaria a sua primazia sobre o setor financeiro. Os dias de glória do capitalismo "laisser faire" do Consenso de Washington tinham acabado. As economias mais ricas do mundo voltariam as suas atenções para estimular a engenharia real, não a financeira.
Uma ou duas coisas realmente mudaram. As ciências econômicas foram expostas como uma disciplina baseada em fé. Escravos de longa data de expectativas racionais e de teorias da eficiência dos mercados retornaram aos fundamentos e redescobriram Keynes. Um alto posto no Goldman Sachs costumava conferir um toque de classe, bem como um jato particular. Os banqueiros perderam sua aura de respeitabilidade.
A desonra pública, porém, parece ser um preço baixo a pagar pela calamidade que se abateu sobre todos os demais. Um executivo de banco que conheço há muito tempo me diz que espera receber o mesmo número de milhões que sempre recebeu, ainda que vá levar bem menos deles para na maleta de dinheiro em espécie.
Ocorreu também, é claro, uma mudança realmente grande: centenas de bilhões de dólares em ativos tóxicos que no passado repousavam na contabilidade dos bancos foram amontoados no déficit público causado pela recessão induzida pelo colapso. As famílias estão pagando a conta dos banqueiros através via impostos crescentes, serviços públicos de pior qualidade e maior desemprego.
A determinação política se rendeu ao medo. Ninguém bradou com maior eloquência do que Sarkozy sobre as perversidades dos mercados liberais. Esse seria o momento, disse-nos o presidente da França, em que o capitalismo seria refeito à imagem do mercado social europeu. Tudo isso, contudo, foi antes que a crise da dívida soberana grega sitiasse a zona do euro. Agora Sarkozy permanece acordado na sua cama noites a fio temendo que a França possa perder sua classificação de crédito AAA.
Ele não está só. Enquanto buscam reduzir enormes déficits públicos, os políticos ocidentais em quase todas as partes estão sob o jugo dos mercados de capital globais. David Cameron não hesitou a respeito: o premiê britânico diz que está cortando radicalmente os gastos com o Estado do Bem-Estar e regularizando o papel global do país porque o Banco da Inglaterra (o BC) lhe disse que as agências de classificação de risco não se satisfariam com nada menos do que isso.
As agências de classificação de risco, lembra-se delas? Há quem possa se lembrar de que essas mesmas organizações foram profundamente cúmplices na tramóia que fez instrumentos de dívida sem valor serem recondicionados para parecerem ser títulos financeiros de primeira linha. Tenho certeza de ter escutado políticos dizerem que elas seriam colocadas no seu devido lugar. Isso jamais aconteceu. As agências de classificação jamais se arrependeram; e agora elas reinam mais uma vez.
Desde o início, essa crise estava repleta de ironias. Um dos grandes motivos que explicam por que tamanha quantidade de dinheiro chafurdava em torno do sistema, pronta para ser emprestada a americanos compradores de moradias que jamais quitariam os empréstimos, foi que grande parte dos países emergentes do mundo interpretou o Ocidente ao pé da letra.
Depois do colapso financeiro do fim da década de 90, a Ásia aprendeu de cor o catecismo da prudência fiscal do FMI. O dinheiro que ela subsequentemente economizou foi emprestado ao Ocidente perdulário, para respaldar o crédito fácil que deu ao mundo os financiamentos imobiliários de alto risco (os "subprime") e os títulos lastreados em carteiras de empréstimos (os CDO).
A maioria dos europeus, é claro, botou a culpa do colapso na soleira do desenfreado capitalismo anglo-americano, só para descobrir que suas próprias instituições foram completamente cúmplices. Enquanto Merkel denunciava os fundos de hedge e os fundos de private equity (na realidade, relativamente inocentes na calamidade), constatou-se que os bancos regionais estatais da Alemanha foram um dos jogadores mais entusiastas no cassino.
Nada disso tem a intenção de absolver governos e órgãos reguladores da responsabilidade pelo colapso. O então governo trabalhista do Reino Unido se contentou em olhar para o outro lado enquanto o setor financeiro continuava a gerar as receitas fiscais que financiavam o gasto social. A Grécia estava fraudando a contabilidade muito antes que a maioria tivesse ouvido falar da AIG. Alan Greenspan e Ben Bernanke, do Fed (o banco central dos EUA), cometeram o erro de acreditar na sua própria propaganda.
Agora as autoridades nos dirão que tomaram providências para sanar esses erros. Alguns governos instituíram impostos sobre lucros extraordinários que incidem sobre os grandes bancos; os EUA aprovaram um regime regulatório mais rígido; os salários com gratificações exorbitantes agora incluem um tênue vínculo com desempenho. O comitê de reguladores da Basileia está prestes a impor exigências de capital mais rígidas - não antes, parece, de 2018.
Ainda que sejam meritórias, tais medidas parecem ser meros paliativos quando contrapostas à capacidade dos mercados de capital de causarem estrago econômico. As instituições financeiras continuam obtendo vastos lucros com atividades de intermediação descritas por Adair Turner, que chefia a FSA, órgão regulador do setor financeiro do Reino Unido, como basicamente inúteis. Turner, porém, tem sido uma voz praticamente solitária ao sugerir uma reavaliação fundamental.
A crise na zona do euro mostra como os instintos de manada dos mercados de capital podem desestabilizar um continente inteiro. A consequência foi obrigar os governos europeus a empreender uma corrida prematura e arriscada para reduzir drasticamente seus déficits fiscais antes que a recuperação econômica estivesse garantida.
Com uma pequena ajuda das agências reguladoras, os bancos já podem se dizer devidamente testados para estresse, mas a instabilidade sistêmica persiste. Os mercados internacionais se moveram bem além da capacidade dos políticos de compreendê-los, que dirá supervisioná-los, adequadamente. Essa falha da governança política em acompanhar o ritmo da integração econômica global é tão evidente agora como foi em 2007.
Mesmo se os políticos souberem reconhecer melhor os riscos da interdependência e as vulnerabilidades de instituições e instrumentos financeiros particulares, ainda estão longe de um consenso sobre como dividir a responsabilidade pela supervisão global. Portanto, três anos depois, as coisas estão praticamente como estavam, exceto que a maioria de nós está mais pobre. Os mercados reinam. OK?
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