Se não bastasse o estabelecimento de um regime militar no Brasil, durante o governo de Arthur da Costa e Silva (1967 a 1969) o país conheceu o mais cruel e famoso dos 17 Atos Institucionais: o AI-5. Instituído há exatos 40 anos, em 13 de dezembro de 1968, ele serviu como um instrumento que concedeu aos militares poderes absolutos, e legitimou os atos de tortura realizados até o momento. O mais abrangente e autoritário de todos os atos institucionais revogou os dispositivos constitucionais de 1967 e suspendeu os direitos políticos dos cidadãos. Até 31 de dezembro de 1978, o país mudou profundamente e tenta até hoje restabelecer de maneira sólida a democratização.
Para entender esse período, às vezes esquecido, da história brasileira, a IHU On-Line conversou com algumas pessoas que vivenciaram esse momento lamentável.
A reportagem é de Patrícia Fachin.
Há 40 anos, o doutor em História e docente da Unisinos, Solon Viola, preparava-se para morar em Porto Alegre e participar do Movimento dos Estudantes Secundaristas. Segundo ele, o AI-5 apressou sua mudança para a capital e, a partir desse momento, afirma “passei a viver em um estreito limite entre a vida legal e a clandestina”.
Laurício Neumann, doutor em Educação e professor na mesma universidade, na época cursava o primeiro ano de Filosofia e participava do Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (FAFIMC), de Viamão. Para ele, a notícia da instituição do AI-5 não foi nenhuma surpresa, pois vários colegas já estavam presos por terem participado do Congresso da União Nacional de Estudantes (UNE), em Ibiúna, São Paulo (1968), e pelo envolvimento com outras atividades consideradas subversivas. No dia 13-12-1968, lembra, “ainda estava na faculdade, preparando-me para passar o Natal e o Ano Novo com a família, no interior, em São Paulo das Missões. Pode parecer estranho, mas recebi a notícia do AI-5 com certa indiferença, pois, na verdade, ele veio tão somente legitimar aquilo que o regime já vinha fazendo com muita crueldade, desde o dia 31 de março de 1964, com o golpe militar contra João Goulart (Jango)”.
“O AI-5 caiu como uma bomba”
Doutor em Sociologia, pela Université de Toulouse-Le-Mirail, da França, o atual professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ivo Lesbaupin, na época estudante dominicano e morador do Convento das Perdizes, diz que “o decreto do AI-5 caiu como uma bomba”. Para ele, “a suspensão das garantias constitucionais e o fechamento do Congresso era um aviso de que a repressão ia recrudescer, que a ditadura ia se aprofundar”. E assim foi: o autoritarismo militar excedeu todos os parâmetros de civilidade e instalou barbárie na sociedade, conta Solon Viola. “O AI-5 abandonava qualquer traço de justiça civilizatória que a humanidade vinha (e ainda continua) buscando ao longo de sua história e reconstruía na América do Sul a tragédia vivida na Alemanha nas décadas de 1930 e 1940”, aponta.
Embora vivessem sob a linha dura da ditadura militar, até a imposição do AI-5, algumas liberdades eram mantidas e a imprensa ainda podia se manifestar. “A partir de então, a censura se estabeleceu, as prisões políticas se multiplicaram e a tortura se tornou uma prática sistemática nos interrogatórios”, recorda Lesbaupin. O AI-5 eliminou a participação democrática, “instituiu a tortura como prática cotidiana do terror do Estado sobre a população e montou uma máquina publicitária da qual a mídia eletrônica se transformava no principal veículo de divulgação”, assegura o professor de Direitos Humanos e Democracia na América Latina Solon Viola. O AI-5 suspendeu as garantias constitucionais, autorizou a prisão de líderes políticos, estudantis, religiosos, sindicais. Além disso, ocorreram mortes e alguns exilados nunca mais foram encontrados.
Com o AI-5 veio a pena de morte
Ex-integrante da equipe editorial do Jornal Mundo Jovem e do Setor Regional de Juventude, da CNBB Sul-III, Laurício Neumann lembra que com o AI-5, veio o AI-14/69, que instituiu a prisão perpétua e a pena de morte, para todos aqueles que atentassem contra o regime. “Como se não bastasse, o presidente ditador baixou o Decreto Lei nº 69.534, de 11/11/70, permitindo ao presidente da República assinar decretos secretos.” Assim, todos os cidadãos estavam sob suspeita e corriam o risco de serem perseguidos, presos e torturados. Neumann sofreu essa experiência e as recordações desse trágico momento ainda o comovem e certamente serão carregadas pelo resto da vida. “Sabia que, cedo ou tarde, a minha vez chegaria”, disse ele à IHU On-Line. “Fui preso no dia 2 de setembro de 1970, ao sair da Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (FAFIMC), de Viamão, e ao dirigir-me para o centro da cidade, onde morava com mais dois colegas filósofos. A polícia civil e militar cercou o quarteirão e se instalou dentro do quarto da pensão onde morávamos. Caímos numa cilada.” Segundo ele, não existem palavras para descrever as sessões de torturas, mas “filmes como Tropa de elite e Batismo de sangue conseguem mostrar um pouco da selvageria de que o ser humano é capaz em termos de crueldade com o outro”, compara.
Uma página virada?
Com a economia em ascensão, a ditadura representou para muitos brasileiros um momento fascinante, pois emprego e dinheiro não faltavam no país. “Enquanto o crescimento econômico, possibilitado pelo ingresso abundante do capital externo, pelo acesso à energia barata e pelo intenso arrocho salarial feito sobre trabalhadores amordaçados, foi capaz de beneficiar setores das elites econômicas, o governo militar pôde manter a política repressiva”, diz Solon. E dispara: “Logo que a crise econômica se fez anunciar rompeu-se a unidade e o próprio Estado percebeu que era urgente recolocar sob seu comando os organismos de repressão. O surpreendente é que no fim da longa noite de trevas a sociedade ressurgiria organizada em movimentos sociais a favor da vida e da liberdade”.
17 Atos Institucioinais
Com a desculpa de combater a “corrupção e a subeversão”, o governo decretou 17 Atos Institucionais após o Golpe militar de 1964. Eles serviram como mecanismos para legalizar e legitimar as ações políticas dos militares, estabelecendo diversos poderes extra-constitucionais. Sem os Atos, a Constituiçao de 1946 tornaria inexecutável o regime militar. De 1964 a 1969 foram decretados todos os atos regulamentados por 104 atos complementares.
Ordens impostas pelo AI-5• Fechou o Congresso Nacional por prazo indeterminado; • Decretou o recesso dos mandatos de senadores, deputados e vereadores. Estes ainda continuaram a receber parte fixa de seus subsídios; • Autorizou, a critério do interesse nacional, a intervenção nos estados e municípios; • Tornou legal legislar por decreto-lei; • Autorizou, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis; • O presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo; • Suspendeu a possibilidade de qualquer reunião de cunho político; • Recrudesceu a censura, determinando a censura prévia, que se estendia à música, ao teatro e ao cinema de assuntos de caráter político e de valores imorais; • Suspendeu o habeas corpus para os chamados crimes políticos.
Para entender esse período, às vezes esquecido, da história brasileira, a IHU On-Line conversou com algumas pessoas que vivenciaram esse momento lamentável.
A reportagem é de Patrícia Fachin.
Há 40 anos, o doutor em História e docente da Unisinos, Solon Viola, preparava-se para morar em Porto Alegre e participar do Movimento dos Estudantes Secundaristas. Segundo ele, o AI-5 apressou sua mudança para a capital e, a partir desse momento, afirma “passei a viver em um estreito limite entre a vida legal e a clandestina”.
Laurício Neumann, doutor em Educação e professor na mesma universidade, na época cursava o primeiro ano de Filosofia e participava do Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (FAFIMC), de Viamão. Para ele, a notícia da instituição do AI-5 não foi nenhuma surpresa, pois vários colegas já estavam presos por terem participado do Congresso da União Nacional de Estudantes (UNE), em Ibiúna, São Paulo (1968), e pelo envolvimento com outras atividades consideradas subversivas. No dia 13-12-1968, lembra, “ainda estava na faculdade, preparando-me para passar o Natal e o Ano Novo com a família, no interior, em São Paulo das Missões. Pode parecer estranho, mas recebi a notícia do AI-5 com certa indiferença, pois, na verdade, ele veio tão somente legitimar aquilo que o regime já vinha fazendo com muita crueldade, desde o dia 31 de março de 1964, com o golpe militar contra João Goulart (Jango)”.
“O AI-5 caiu como uma bomba”
Doutor em Sociologia, pela Université de Toulouse-Le-Mirail, da França, o atual professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ivo Lesbaupin, na época estudante dominicano e morador do Convento das Perdizes, diz que “o decreto do AI-5 caiu como uma bomba”. Para ele, “a suspensão das garantias constitucionais e o fechamento do Congresso era um aviso de que a repressão ia recrudescer, que a ditadura ia se aprofundar”. E assim foi: o autoritarismo militar excedeu todos os parâmetros de civilidade e instalou barbárie na sociedade, conta Solon Viola. “O AI-5 abandonava qualquer traço de justiça civilizatória que a humanidade vinha (e ainda continua) buscando ao longo de sua história e reconstruía na América do Sul a tragédia vivida na Alemanha nas décadas de 1930 e 1940”, aponta.
Embora vivessem sob a linha dura da ditadura militar, até a imposição do AI-5, algumas liberdades eram mantidas e a imprensa ainda podia se manifestar. “A partir de então, a censura se estabeleceu, as prisões políticas se multiplicaram e a tortura se tornou uma prática sistemática nos interrogatórios”, recorda Lesbaupin. O AI-5 eliminou a participação democrática, “instituiu a tortura como prática cotidiana do terror do Estado sobre a população e montou uma máquina publicitária da qual a mídia eletrônica se transformava no principal veículo de divulgação”, assegura o professor de Direitos Humanos e Democracia na América Latina Solon Viola. O AI-5 suspendeu as garantias constitucionais, autorizou a prisão de líderes políticos, estudantis, religiosos, sindicais. Além disso, ocorreram mortes e alguns exilados nunca mais foram encontrados.
Com o AI-5 veio a pena de morte
Ex-integrante da equipe editorial do Jornal Mundo Jovem e do Setor Regional de Juventude, da CNBB Sul-III, Laurício Neumann lembra que com o AI-5, veio o AI-14/69, que instituiu a prisão perpétua e a pena de morte, para todos aqueles que atentassem contra o regime. “Como se não bastasse, o presidente ditador baixou o Decreto Lei nº 69.534, de 11/11/70, permitindo ao presidente da República assinar decretos secretos.” Assim, todos os cidadãos estavam sob suspeita e corriam o risco de serem perseguidos, presos e torturados. Neumann sofreu essa experiência e as recordações desse trágico momento ainda o comovem e certamente serão carregadas pelo resto da vida. “Sabia que, cedo ou tarde, a minha vez chegaria”, disse ele à IHU On-Line. “Fui preso no dia 2 de setembro de 1970, ao sair da Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (FAFIMC), de Viamão, e ao dirigir-me para o centro da cidade, onde morava com mais dois colegas filósofos. A polícia civil e militar cercou o quarteirão e se instalou dentro do quarto da pensão onde morávamos. Caímos numa cilada.” Segundo ele, não existem palavras para descrever as sessões de torturas, mas “filmes como Tropa de elite e Batismo de sangue conseguem mostrar um pouco da selvageria de que o ser humano é capaz em termos de crueldade com o outro”, compara.
Uma página virada?
Com a economia em ascensão, a ditadura representou para muitos brasileiros um momento fascinante, pois emprego e dinheiro não faltavam no país. “Enquanto o crescimento econômico, possibilitado pelo ingresso abundante do capital externo, pelo acesso à energia barata e pelo intenso arrocho salarial feito sobre trabalhadores amordaçados, foi capaz de beneficiar setores das elites econômicas, o governo militar pôde manter a política repressiva”, diz Solon. E dispara: “Logo que a crise econômica se fez anunciar rompeu-se a unidade e o próprio Estado percebeu que era urgente recolocar sob seu comando os organismos de repressão. O surpreendente é que no fim da longa noite de trevas a sociedade ressurgiria organizada em movimentos sociais a favor da vida e da liberdade”.
17 Atos Institucioinais
Com a desculpa de combater a “corrupção e a subeversão”, o governo decretou 17 Atos Institucionais após o Golpe militar de 1964. Eles serviram como mecanismos para legalizar e legitimar as ações políticas dos militares, estabelecendo diversos poderes extra-constitucionais. Sem os Atos, a Constituiçao de 1946 tornaria inexecutável o regime militar. De 1964 a 1969 foram decretados todos os atos regulamentados por 104 atos complementares.
Ordens impostas pelo AI-5• Fechou o Congresso Nacional por prazo indeterminado; • Decretou o recesso dos mandatos de senadores, deputados e vereadores. Estes ainda continuaram a receber parte fixa de seus subsídios; • Autorizou, a critério do interesse nacional, a intervenção nos estados e municípios; • Tornou legal legislar por decreto-lei; • Autorizou, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis; • O presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo; • Suspendeu a possibilidade de qualquer reunião de cunho político; • Recrudesceu a censura, determinando a censura prévia, que se estendia à música, ao teatro e ao cinema de assuntos de caráter político e de valores imorais; • Suspendeu o habeas corpus para os chamados crimes políticos.
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