O ponto da discórdia é a interpretação que se dá à Lei de Anistia (nº 6.683/ 1979), sancionada pelo presidente Figueiredo. A Lei da Anistia não era, originalmente, ampla, geral e irrestrita. No parágrafo 1º, anistiava "os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política", mas, no 2º, excluía "os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado". Nesses termos, a lei beneficiava os torturadores, mas condenava os guerrilheiros. A mudança veio com a Constituição de 1988, que estendeu o benefício aos condenados por atos terroristas.
Os que são contrários a que se volte a mexer neste período alegam que não há o completar, pois tudo já foi resolvido com a Lei de Anistia. Argumentam que anistia é esquecimento. “É um assunto superado. A Lei de Anistia é peremptória, e estabelece um esquecimento, um perdão para os dois lados. Foi uma pedra colocada sobre o ocorrido. Também houve crimes do lado dos opositores ao regime. Mexer com uma coisa dessas pode gerar uma bola de neve”, diz o jurista e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Velloso.
Há o entendimento de que mudar a lei seria revogar aquilo que já foi decidido anteriormente. Esse ponto de vista é compartilhado pelo atual decano do STF, Celso de Mello. Ele já disse que a legislação nacional não permite a punição de crimes cometidos durante o regime militar e que a Lei da Anistia foi equânime, sem privilegiar qualquer um dos lados.
Também se argumenta que a Lei de Anistia favoreceu os dois lados, torturadores e perseguidos políticos e que, portanto, não foi uma “auto-anistia”, – um salvo-conduto concedido por ditadores em benefício próprio – caso que se teria dado em outros países, mas não no Brasil.
A atitude de Tarso Genro atraiu a ira de militares da ativa e da reserva que a taxaram de “revanchismo”. Mas, o setor não ficou apenas na indignação e na revolta. Seus líderes partiram para o ataque e ameaçaram dizendo que, nesse caso, também opositores do regime militar deveriam ser levados aos tribunais e condenados.
“Será que quem seqüestrou o embaixador norte-americano e o prendeu dizendo, todo dia, que ia matá-lo não cometeu ato de tortura da mesma forma, igualmente condenável?”, reagiu o presidente do Clube Militar, general-de-Exército da reserva Gilberto Barbosa de Figueiredo. Os militares querem que, em caso de revisão, também os guerrilheiros – os que estavam no “outro lado” – sejam julgados e condenados. “Se for para julgar quem torturou, vamos julgar todos, inclusive muitos que estão na cúpula do governo hoje e tem até ministro de Estado”, atacou Gilberto Barbosa. O petardo tinha endereço certo. Vários dos atuais ministros do Governo Lula estiveram do “outro lado” durante os anos de chumbo. O ministro da Comunicação de Governo, Franklin Martins, foi um dos idealizadores do seqüestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick. Também o ex-ministro José Dirceu, o deputado estadual José Genoino (PT-SP) e a ministra Dilma Roussef, entre outros, tiveram participação ativa na resistência ao regime militar, assim como o próprio ministro Tarso Genro. São também alvo dos ataques de Gilberto Barbosa. Os militares, no entanto, não se contentam apenas com isso. Indignados com o que chamam de “revanchismo” do ministro Tarso Genro, oficiais da reserva, com o apoio de comandantes da ativa, patrocinarão uma espécie de anti-seminário no Clube Militar do Rio de Janeiro, no próximo dia 7 de agosto. O objetivo do seminário é debater o que consideram “passado terrorista” de autoridades do governo Lula e de personalidades do PT, discutindo, inclusive, se não seria o caso de puni-los pelos excessos cometidos na luta armada.
Vale lembrar que o Clube Militar do Rio esteve envolvido recentemente em outra questão polêmica: a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, de Roraima. Em palestra no Clube, o general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, defendeu que a Reserva homologada pelo presidente Lula em 2005, dado o seu território e sua localização, representa uma séria ameaça à soberania nacional. A considerar esses dois episódios, o Clube Militar do Rio de Janeiro configura-se como um centro militar que se alinha com posições francamente conservadoras e retrógradas. A posição dos militares é compartilhada pelo PT e também pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim. “Se o ministro quer agir como militante político, que peça licença do cargo”, reagiu o deputado Jilmar Tatto (PT-SP), ao acrescentar que Tarso teria criado uma polêmica “fora de hora”. Posição semelhante foi manifestada pelo deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP). “A prioridade agora do PT é aprovar nas urnas a política de desenvolvimento, distribuição de renda e de criação de empregos implementada pelo governo”, disse. Para ele, o PT está agora focado nas eleições municipais.
Arquivos e anistia são um tabu para o Governo
O ministro Nelson Jobim reagiu duramente à manifestação de Tarso Genro alegando tratar-se de assunto que cabe ser analisado pelo Judiciário e não pelo Executivo, tirando, dessa maneira, de Tarso a autoridade para tratar do assunto. "Essa é uma questão exclusivamente da área do Poder Judiciário, de interpretação da lei", disse Jobim. Ressaltou também que a Lei da Anistia, de 1979, já atendeu a seus objetivos, já realizou seus efeitos e não pode ser alterada. "Mudar essa legislação seria a mesma coisa que revogar aquilo que já foi decidido anteriormente, que foi uma pacificação nacional." Jobim destacou ainda que o Exército não tem responsabilidade histórica em relação àquele período da nossa história recente e que o órgão “continua com seu prestígio nacional intocável”. Além disso, não se trata de ficar remoendo o passado: "Estamos discutindo o futuro, não estamos mais discutindo o passado", disse Jobim.
Uma polêmica fora de hora, mas também incômoda para o governo. Mas, qual seria então a hora oportuna para uma discussão dessa relevância? Talvez porque mexa com tantos interesses manifestos – a gritaria dos militares –, seja melhor ignorá-la.
Justiça e democracia andam de mãos dadas
As pretensões políticas de Tarso Genro
O ministro Tarso Genro tem o mérito de trazer para o debate um tema de grande relevância para o aprofundamento da democracia em nosso país. Ainda que diga respeito a um passado recente, nem por isso deixa de ter relevância para o presente. Pelo contrário, fazer as pazes com o passado contribui para tirar do armário os esqueletos que continuam a assombrar o nosso presente. A relação entre a Lei da Anistia e a violência, como vimos acima, é apenas mais um sinal de tudo isso. Mas, quais seriam as pretensões de Tarso Genro ao trazer esse tema para o debate? Ou seria tão despretensioso ao comprar essa briga com o Exército e que causa indigestão no próprio governo? Nada disso.
Argentina avança no processo de fazer a memória do passado
Os que são contrários a que se volte a mexer neste período alegam que não há o completar, pois tudo já foi resolvido com a Lei de Anistia. Argumentam que anistia é esquecimento. “É um assunto superado. A Lei de Anistia é peremptória, e estabelece um esquecimento, um perdão para os dois lados. Foi uma pedra colocada sobre o ocorrido. Também houve crimes do lado dos opositores ao regime. Mexer com uma coisa dessas pode gerar uma bola de neve”, diz o jurista e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Velloso.
Há o entendimento de que mudar a lei seria revogar aquilo que já foi decidido anteriormente. Esse ponto de vista é compartilhado pelo atual decano do STF, Celso de Mello. Ele já disse que a legislação nacional não permite a punição de crimes cometidos durante o regime militar e que a Lei da Anistia foi equânime, sem privilegiar qualquer um dos lados.
Também se argumenta que a Lei de Anistia favoreceu os dois lados, torturadores e perseguidos políticos e que, portanto, não foi uma “auto-anistia”, – um salvo-conduto concedido por ditadores em benefício próprio – caso que se teria dado em outros países, mas não no Brasil.
A atitude de Tarso Genro atraiu a ira de militares da ativa e da reserva que a taxaram de “revanchismo”. Mas, o setor não ficou apenas na indignação e na revolta. Seus líderes partiram para o ataque e ameaçaram dizendo que, nesse caso, também opositores do regime militar deveriam ser levados aos tribunais e condenados.
“Será que quem seqüestrou o embaixador norte-americano e o prendeu dizendo, todo dia, que ia matá-lo não cometeu ato de tortura da mesma forma, igualmente condenável?”, reagiu o presidente do Clube Militar, general-de-Exército da reserva Gilberto Barbosa de Figueiredo. Os militares querem que, em caso de revisão, também os guerrilheiros – os que estavam no “outro lado” – sejam julgados e condenados. “Se for para julgar quem torturou, vamos julgar todos, inclusive muitos que estão na cúpula do governo hoje e tem até ministro de Estado”, atacou Gilberto Barbosa. O petardo tinha endereço certo. Vários dos atuais ministros do Governo Lula estiveram do “outro lado” durante os anos de chumbo. O ministro da Comunicação de Governo, Franklin Martins, foi um dos idealizadores do seqüestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick. Também o ex-ministro José Dirceu, o deputado estadual José Genoino (PT-SP) e a ministra Dilma Roussef, entre outros, tiveram participação ativa na resistência ao regime militar, assim como o próprio ministro Tarso Genro. São também alvo dos ataques de Gilberto Barbosa. Os militares, no entanto, não se contentam apenas com isso. Indignados com o que chamam de “revanchismo” do ministro Tarso Genro, oficiais da reserva, com o apoio de comandantes da ativa, patrocinarão uma espécie de anti-seminário no Clube Militar do Rio de Janeiro, no próximo dia 7 de agosto. O objetivo do seminário é debater o que consideram “passado terrorista” de autoridades do governo Lula e de personalidades do PT, discutindo, inclusive, se não seria o caso de puni-los pelos excessos cometidos na luta armada.
Vale lembrar que o Clube Militar do Rio esteve envolvido recentemente em outra questão polêmica: a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, de Roraima. Em palestra no Clube, o general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, defendeu que a Reserva homologada pelo presidente Lula em 2005, dado o seu território e sua localização, representa uma séria ameaça à soberania nacional. A considerar esses dois episódios, o Clube Militar do Rio de Janeiro configura-se como um centro militar que se alinha com posições francamente conservadoras e retrógradas. A posição dos militares é compartilhada pelo PT e também pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim. “Se o ministro quer agir como militante político, que peça licença do cargo”, reagiu o deputado Jilmar Tatto (PT-SP), ao acrescentar que Tarso teria criado uma polêmica “fora de hora”. Posição semelhante foi manifestada pelo deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP). “A prioridade agora do PT é aprovar nas urnas a política de desenvolvimento, distribuição de renda e de criação de empregos implementada pelo governo”, disse. Para ele, o PT está agora focado nas eleições municipais.
Arquivos e anistia são um tabu para o Governo
O ministro Nelson Jobim reagiu duramente à manifestação de Tarso Genro alegando tratar-se de assunto que cabe ser analisado pelo Judiciário e não pelo Executivo, tirando, dessa maneira, de Tarso a autoridade para tratar do assunto. "Essa é uma questão exclusivamente da área do Poder Judiciário, de interpretação da lei", disse Jobim. Ressaltou também que a Lei da Anistia, de 1979, já atendeu a seus objetivos, já realizou seus efeitos e não pode ser alterada. "Mudar essa legislação seria a mesma coisa que revogar aquilo que já foi decidido anteriormente, que foi uma pacificação nacional." Jobim destacou ainda que o Exército não tem responsabilidade histórica em relação àquele período da nossa história recente e que o órgão “continua com seu prestígio nacional intocável”. Além disso, não se trata de ficar remoendo o passado: "Estamos discutindo o futuro, não estamos mais discutindo o passado", disse Jobim.
Uma polêmica fora de hora, mas também incômoda para o governo. Mas, qual seria então a hora oportuna para uma discussão dessa relevância? Talvez porque mexa com tantos interesses manifestos – a gritaria dos militares –, seja melhor ignorá-la.
A polêmica, aliás, ressuscitou um tema espinhoso para o Governo Lula. Já analisamos em outros momentos que Lula nunca fez questão de abrir os arquivos sobre o período militar, trancafiados a sete chaves pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no findar-se de seu governo. O tema é tabu no governo federal. O pesquisador americano Peter Kornbluh, da organização não-governamental Arquivo Nacional de Segurança, em Washington, é um especialista no assunto dos arquivos e não se conforma com o fato de o governo brasileiro ainda não ter aberto esses arquivos. "O Brasil é um exemplo de democracia na América Latina, mas ainda não conseguiu fechar as portas do passado. Enquanto não resolver a questão dos arquivos, sempre vai ter um debate sobre esse período. A dor daquela época não vai acabar". Ou seja, a ferida sempre voltará a sangrar. A dificuldade de o governo brasileiro em lidar com os arquivos da época militar, afirmam especialistas, está relacionada a alguns fatores, como a transição "lenta e gradual" do regime militar para o democrático, pactuada por um governo autoritário; o controle militar ainda presente - como nos morros cariocas; e com a pressão das Forças Armadas, que não quer a divulgação dos dados. O número de vítimas, menor que em casos como no Chile e na Argentina, também diferencia a pressão social do Brasil com relação aos dois países vizinhos.
De acordo com um auxiliar direto, o presidente "acha este assunto [da anistia] muito delicado e não quer discuti-lo" neste momento. Outro auxiliar reforçou que o assunto ainda não foi objeto de discussão no Planalto, já que Lula considera que essa discussão "não tem respaldo jurídico". Nisso Lula se apóia em opiniões manifestadas por juízes do Supremo Tribunal Federal.
Em última instância, o Planalto e o PT resistem à discussão. E ao dar esse tratamento ao assunto, o Governo Lula mostra outra faceta do seu conservadorismo e do seu pragmatismo.
É de se lamentar, ao lado disso, a pouca repercussão na sociedade civil organizada. E isso diferencia o caso brasileiro do argentino, por exemplo, onde houve uma mobilização social intensa a favor do avanço dos processos por violações dos direitos humanos. Mas, destaque-se, para isso a Argentina teve que esperar pelo governo de Néstor Kirchner.
De acordo com um auxiliar direto, o presidente "acha este assunto [da anistia] muito delicado e não quer discuti-lo" neste momento. Outro auxiliar reforçou que o assunto ainda não foi objeto de discussão no Planalto, já que Lula considera que essa discussão "não tem respaldo jurídico". Nisso Lula se apóia em opiniões manifestadas por juízes do Supremo Tribunal Federal.
Em última instância, o Planalto e o PT resistem à discussão. E ao dar esse tratamento ao assunto, o Governo Lula mostra outra faceta do seu conservadorismo e do seu pragmatismo.
É de se lamentar, ao lado disso, a pouca repercussão na sociedade civil organizada. E isso diferencia o caso brasileiro do argentino, por exemplo, onde houve uma mobilização social intensa a favor do avanço dos processos por violações dos direitos humanos. Mas, destaque-se, para isso a Argentina teve que esperar pelo governo de Néstor Kirchner.
Defensores dos direitos humanos são favoráveis à revisão da Lei de Anistia
Portanto, essa interpretação puramente jurídica levaria a crer que o assunto está encerrado e não se toca mais nisso. Uma das interpretações dadas à palavra anistia pelos juízes evoca justamente a idéia de esquecimento. O Brasil, ao contrário, por exemplo, da Argentina, do Uruguai ou mesmo do Chile, “não só não puniu, mas também impôs uma absurda censura no que se refere a atos praticados durante a ditadura militar. São dois erros graves. Anistia não é amnésia. Todos têm o direito de saber o que aconteceu no submundo dos órgãos de repressão. O que não se pode é anistiar sem saber o quê?”, argumenta Cezar Britto presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). E há quem responsabilize diretamente o Estado por essa situação: “O Poder Executivo e o Congresso Nacional nada têm feito para esclarecer esses fatos. É preciso saudar essa ação dos procuradores para que esses crimes não sigam para o esquecimento eterno”, disse Augustino Veit. O advogado e ex-presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos refere-se à atitude do Ministério Público de São Paulo que já moveu ações civis contra dois ex-comandantes do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) - os coronéis reformados do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel. De acordo com defensores dos direitos humanos, a Lei de Anistia não beneficiou os “agentes do Estado” que tenham praticado torturas e assassinatos na ditadura militar. “O texto da lei não diz isso. Nem poderia dizer, uma vez que o Brasil é signatário de documentos da Organização das Nações Unidas, segundo os quais a tortura é um crime comum e imprescritível”, afirmou a presidente da seção paulista do Grupo Tortura Nunca Mais, Rose Nogueira. Não se pode esquecer a perspectiva histórica da Lei da Anistia – militares queriam evitar qualquer revanchismo
Maria Amélia Teles, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, observou que, do ponto de vista do direito internacional, a tortura faz parte da lista de crimes de lesa-humanidade, considerados imprescritíveis. “A anistia é um instrumento jurídico que visa trazer de volta para a sociedade pessoas punidas por crimes políticos, mas não os agentes dos crimes, os que atuaram em nome da ditadura”, afirmou. “Os perseguidores não foram anistiados. Aliás, nem reivindicavam isso: a campanha pela anistia foi feita pelos familiares dos desaparecidos, dos presos, torturados. É uma falácia dizer que a anistia tinha mão dupla. É uma farsa que no Brasil querem transformar em verdade”. “Muitos condenados pelo regime militar por esses crimes ficaram presos e só conseguiram sair quando suas penas foram atenuadas”, observou Suzana Lisboa, outra integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. “Ora, se não houve anistia para eles, por que haveria para os torturadores, os que torturaram e massacraram cidadãos que eles deveriam proteger?”, pergunta.
A cientista política Maria Celina D’Araujo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), recupera a gênese histórica da Lei de Anistia, para justificar seu viés conservador. O perdão aos torturadores foi negociado pelos militares durante a transição democrática. Ao devolver o poder a um governo civil, diz ela, as Forças Armadas queriam evitar qualquer clima de revanchismo. Por isso, teria prevalecido a interpretação de que a Lei de Anistia beneficiaria inclusive quem torturou. “Por que aqui este assunto ficou intacto? Porque na transição brasileira isso foi um acordo feito com os políticos da época, Tancredo, Sarney e Forças Armadas, no sentido de que a anistia seria assim”, afirma Maria Celina.
Maria Amélia Teles, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, observou que, do ponto de vista do direito internacional, a tortura faz parte da lista de crimes de lesa-humanidade, considerados imprescritíveis. “A anistia é um instrumento jurídico que visa trazer de volta para a sociedade pessoas punidas por crimes políticos, mas não os agentes dos crimes, os que atuaram em nome da ditadura”, afirmou. “Os perseguidores não foram anistiados. Aliás, nem reivindicavam isso: a campanha pela anistia foi feita pelos familiares dos desaparecidos, dos presos, torturados. É uma falácia dizer que a anistia tinha mão dupla. É uma farsa que no Brasil querem transformar em verdade”. “Muitos condenados pelo regime militar por esses crimes ficaram presos e só conseguiram sair quando suas penas foram atenuadas”, observou Suzana Lisboa, outra integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. “Ora, se não houve anistia para eles, por que haveria para os torturadores, os que torturaram e massacraram cidadãos que eles deveriam proteger?”, pergunta.
A cientista política Maria Celina D’Araujo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), recupera a gênese histórica da Lei de Anistia, para justificar seu viés conservador. O perdão aos torturadores foi negociado pelos militares durante a transição democrática. Ao devolver o poder a um governo civil, diz ela, as Forças Armadas queriam evitar qualquer clima de revanchismo. Por isso, teria prevalecido a interpretação de que a Lei de Anistia beneficiaria inclusive quem torturou. “Por que aqui este assunto ficou intacto? Porque na transição brasileira isso foi um acordo feito com os políticos da época, Tancredo, Sarney e Forças Armadas, no sentido de que a anistia seria assim”, afirma Maria Celina.
Justiça e democracia andam de mãos dadas
Os setores contrários à revisão da Lei de Anistia argumentam que isso poderia trazer prejuízos à democracia. “Isso não seria bom para a democracia brasileira. Sob o ponto de vista político, é desastroso”, diz o jurista Carlos Veloso.
Entretanto, uma pesquisa contesta a tese de que a punição dos torturadores traga riscos de instabilidade à democracia. Pelo contrário: além de consolidar o regime democrático pode melhorar a vida da população, com o avanço da preservação dos direitos humanos no país. A pesquisa foi feita pela professora de Ciências Políticas da Universidade de Minnesota, Kathryn Sikkink. Os regimes democráticos que julgaram aqueles que violaram os direitos humanos, em crimes como tortura, assassinato, prisão sem processo, desaparecimento de pessoas ou genocídio, tiveram uma melhora significativa na preservação dos direitos básicos de seu povo. "Não é verdadeira a hipótese de que o julgamento dos torturadores pode levar a um golpe de Estado", diz Kathryn. A pesquisadora cita o caso da Argentina, onde os índices de respeito aos direitos humanos melhoraram.
Kathryn indica uma continuidade entre a não punição e a violência. Isso explicaria em parte a situação do Brasil. No caso do Brasil, ainda sem punições, a situação foi inversa e o respeito aos direitos básicos hoje é pior do que na época da ditadura, segundo o estudo. "A não-punição abre precedente para que o Estado continue autoritário", comenta Kathryn. "No caso brasileiro houve uma regressão por conta da repressão policial, assassinatos por parte de agentes públicos. Parece que são repressões diferentes, mas não são". Ela cita como exemplo os recentes incidentes com o Exército no Morro da Providência, quando três jovens da comunidade foram entregues por militares a gangues rivais e mortos. "A impunidade do agente do estado pode gerar mais repressão?", questiona. Em outra análise de conjuntura analisávamos esse episódio justamente à luz da necessária democratização do Exército.
A reação – contundente, até mesmo ríspida – das Forças Armadas surpreende pela opacidade a qualquer tentativa de debate sobre esse período, que, aliás, sempre é vista como ameaça à instituição. A ameaça sempre recai diretamente sobre a instituição. O medo do governo de abrir os arquivos é, com certeza, o medo das Forças Armadas. Tudo isso mostra o quanto esse poder ainda é impermeável aos anseios da sociedade e refratário à democracia.
Entretanto, uma pesquisa contesta a tese de que a punição dos torturadores traga riscos de instabilidade à democracia. Pelo contrário: além de consolidar o regime democrático pode melhorar a vida da população, com o avanço da preservação dos direitos humanos no país. A pesquisa foi feita pela professora de Ciências Políticas da Universidade de Minnesota, Kathryn Sikkink. Os regimes democráticos que julgaram aqueles que violaram os direitos humanos, em crimes como tortura, assassinato, prisão sem processo, desaparecimento de pessoas ou genocídio, tiveram uma melhora significativa na preservação dos direitos básicos de seu povo. "Não é verdadeira a hipótese de que o julgamento dos torturadores pode levar a um golpe de Estado", diz Kathryn. A pesquisadora cita o caso da Argentina, onde os índices de respeito aos direitos humanos melhoraram.
Kathryn indica uma continuidade entre a não punição e a violência. Isso explicaria em parte a situação do Brasil. No caso do Brasil, ainda sem punições, a situação foi inversa e o respeito aos direitos básicos hoje é pior do que na época da ditadura, segundo o estudo. "A não-punição abre precedente para que o Estado continue autoritário", comenta Kathryn. "No caso brasileiro houve uma regressão por conta da repressão policial, assassinatos por parte de agentes públicos. Parece que são repressões diferentes, mas não são". Ela cita como exemplo os recentes incidentes com o Exército no Morro da Providência, quando três jovens da comunidade foram entregues por militares a gangues rivais e mortos. "A impunidade do agente do estado pode gerar mais repressão?", questiona. Em outra análise de conjuntura analisávamos esse episódio justamente à luz da necessária democratização do Exército.
A reação – contundente, até mesmo ríspida – das Forças Armadas surpreende pela opacidade a qualquer tentativa de debate sobre esse período, que, aliás, sempre é vista como ameaça à instituição. A ameaça sempre recai diretamente sobre a instituição. O medo do governo de abrir os arquivos é, com certeza, o medo das Forças Armadas. Tudo isso mostra o quanto esse poder ainda é impermeável aos anseios da sociedade e refratário à democracia.
As pretensões políticas de Tarso Genro
O ministro Tarso Genro tem o mérito de trazer para o debate um tema de grande relevância para o aprofundamento da democracia em nosso país. Ainda que diga respeito a um passado recente, nem por isso deixa de ter relevância para o presente. Pelo contrário, fazer as pazes com o passado contribui para tirar do armário os esqueletos que continuam a assombrar o nosso presente. A relação entre a Lei da Anistia e a violência, como vimos acima, é apenas mais um sinal de tudo isso. Mas, quais seriam as pretensões de Tarso Genro ao trazer esse tema para o debate? Ou seria tão despretensioso ao comprar essa briga com o Exército e que causa indigestão no próprio governo? Nada disso.
Tudo indica, para alguns petistas, que a iniciativa de Genro se insere no debate da sucessão presidencial de 2010.
Se o ministro quer agir como militante político, que peça licença do cargo”, reagiu o deputado Jilmar Tatto (PT-SP), ao acrescentar que Tarso teria criado uma polêmica “fora de hora”. “Seria imaturidade achar que com isso ganhará cacife para a disputa presidencial em 2010”, disse.
Posição semelhante foi manifestada pelo deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP). “A prioridade agora do PT é aprovar nas urnas a política de desenvolvimento, distribuição de renda e de criação de empregos implementada pelo governo”, emendou. Além de destacar que o esforço dos petistas está voltado para as eleições municipais, Vaccarezza deixou claro que o partido seguirá a posição do presidente Lula nessa discussão, não a do ministro Tarso.
Tarso, por sua vez, faz questão de desmentir a relação. “Considero leviana uma informação que circulou em determinada coluna de que levantar esse tema está vinculado a uma questão sucessória”, disse. No entanto, a repercussão que acaba tendo, não deixa de ser uma maneira de se cacifar na disputa interna do PT e ganhar a simpatia de setores da sociedade, como, por exemplo, aqueles ligados aos direitos humanos. As aspirações de Tarso Genro são de fazer um contraponto a Dilma Roussef, a candidata preferida de Lula para a sucessão.
Tarso seria uma alternativa àqueles setores que têm resistências ao nome de Dilma Roussef, identificada com o projeto do governo e defensora do desenvolvimento econômico, dos grandes projetos... Ela defende uma agenda pragmática. Certamente, Tarso seria capaz de apresentar uma agenda mais política do que sua concorrente. Mas, pelas reações de lideranças do PT, o partido não quer nem saber disso.
Posição semelhante foi manifestada pelo deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP). “A prioridade agora do PT é aprovar nas urnas a política de desenvolvimento, distribuição de renda e de criação de empregos implementada pelo governo”, emendou. Além de destacar que o esforço dos petistas está voltado para as eleições municipais, Vaccarezza deixou claro que o partido seguirá a posição do presidente Lula nessa discussão, não a do ministro Tarso.
Tarso, por sua vez, faz questão de desmentir a relação. “Considero leviana uma informação que circulou em determinada coluna de que levantar esse tema está vinculado a uma questão sucessória”, disse. No entanto, a repercussão que acaba tendo, não deixa de ser uma maneira de se cacifar na disputa interna do PT e ganhar a simpatia de setores da sociedade, como, por exemplo, aqueles ligados aos direitos humanos. As aspirações de Tarso Genro são de fazer um contraponto a Dilma Roussef, a candidata preferida de Lula para a sucessão.
Tarso seria uma alternativa àqueles setores que têm resistências ao nome de Dilma Roussef, identificada com o projeto do governo e defensora do desenvolvimento econômico, dos grandes projetos... Ela defende uma agenda pragmática. Certamente, Tarso seria capaz de apresentar uma agenda mais política do que sua concorrente. Mas, pelas reações de lideranças do PT, o partido não quer nem saber disso.
Argentina avança no processo de fazer a memória do passado
lizmente, não se percebe a mesma tibieza em outros países no que tange ao acerto de contas com os períodos militares. Uruguai, Chile e, sobretudo, Argentina, estão bem adiantados nos processos por violações dos direitos humanos cometidas durante as ditaduras nas décadas de 70 e 80. O caminho é longo e ainda resta muito a ser feito, mas os três países mostraram disposição para julgar militares, civis e até mesmo membros da Igreja (no caso argentino) acusados de terem seqüestrado, torturado e assassinado opositores das ditaduras. É verdade que na Argentina, que mais avançou, se reclama da demora da Justiça. Mas, o que dizer então do caso do Brasil? Na Argentina, onde as leis do perdão foram anuladas, há atualmente 1.065 militares e civis argentinos estão envolvidos em processos judiciais por crimes da ditadura. Deste total, 17 já foram condenados, 345 estão sendo processados e com prisão preventiva decretada, 46 estão foragidos e 166 morreram. Em outros casos, os acusados estão respondendo ao processo em liberdade ou apenas foram denunciados. No ano passado, foram condenados pelo tribunal de La Plata ex-policial Miguel Etchecolatz e o padre Christian Von Wernich. Ambos foram condenados à prisão perpétua por participação no genocídio cometido pelos militares argentinos. A condenação do padre Von Wernich é uma clara demonstração de que nem os clérigos são poupados. No ano passado, o governo de Néstor Kirchner reabriu o caso Angelelli, bispo que foi assassinado no dia 4 de agosto de 1976 pela ditadura militar argentina. D. Enrique Angelelli é uma figura importante da Igreja argentina alinhada com as idéias do Concílio Vaticano II e da opção pelos pobres. Angelelli, segundo Washington Uranga, que o conheceu pessoalmente quando jovem, vinha mostrando “uma imagem de Igreja que se caracterizava pela opção pelos pobres, criticando não somente o governo militar mas também todo tipo de concentração de poder”. Durante quase 30 anos, D. Angelelli passou a ser uma referência entre as comunidades, mas foi totalmente ignorado pela hierarquia da Igreja na Argentina, para quem sua atuação causava repugnância. Mas em 2006, começou a tirar a figura de Angelelli do ostracismo em que se encontrava. Hoje, há mesmo um grupo que reúne informações para um processo de canonização de D. Angelelli. Lembrando do 33º aniversário do martírio de D. Angelelli, o sítio do IHU publicou o testemunho de Maria Mercedes Llorente, que foi religiosa da Congregação Irmãs da Imaculada Conceição e trabalhou com D. Angelelli na diocese da La Rioja.
No seu relato, Maria Mercedes conta que “desde o começo de sua ação pastoral, com um ouvido no povo e o outro no Evangelho, como estava acostumado a dizer, sua palavra trazia uma opção clara pelos pobres, além de gestos fraternos, de denúncia contra as injustiças. Era uma palavra escutada em todos os cantos da província pelos crentes e não crentes, amigos e inimigos na Missa irradiada aos domingos. Assim, ela começou a incomodar e começaram as calúnias e difamações…”. Maria Mercedes, ex-religiosa e que hoje trabalha pastoralmente com os Wichi, um dos povos originários mais pobres do norte argentino, na província de Formosa, lembra das recomendações que D. Angelelli fazia aos agentes de pastoral: “visitem as pessoas, que a barriga fique verde de tanto mate compartilhado, falem pouco e escutem muito para adentrar-se na alma do povo riojano". Com relação à reabertura do caso, o jornalista Washington Uranga diz que “se espera determinar exatamente quem são os culpados e que eles sejam punidos. Algumas pessoas já depuseram na justiça, mas há muita gente fora do país e não é um caso fácil de provar porque os próprios autores tiveram todas as oportunidades para apagar todas as provas”.
No seu relato, Maria Mercedes conta que “desde o começo de sua ação pastoral, com um ouvido no povo e o outro no Evangelho, como estava acostumado a dizer, sua palavra trazia uma opção clara pelos pobres, além de gestos fraternos, de denúncia contra as injustiças. Era uma palavra escutada em todos os cantos da província pelos crentes e não crentes, amigos e inimigos na Missa irradiada aos domingos. Assim, ela começou a incomodar e começaram as calúnias e difamações…”. Maria Mercedes, ex-religiosa e que hoje trabalha pastoralmente com os Wichi, um dos povos originários mais pobres do norte argentino, na província de Formosa, lembra das recomendações que D. Angelelli fazia aos agentes de pastoral: “visitem as pessoas, que a barriga fique verde de tanto mate compartilhado, falem pouco e escutem muito para adentrar-se na alma do povo riojano". Com relação à reabertura do caso, o jornalista Washington Uranga diz que “se espera determinar exatamente quem são os culpados e que eles sejam punidos. Algumas pessoas já depuseram na justiça, mas há muita gente fora do país e não é um caso fácil de provar porque os próprios autores tiveram todas as oportunidades para apagar todas as provas”.
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