Eis o artigo.
A única coisa em que o ministro Celso Amorim e o comissário europeu Peter Mandelson concordaram a respeito do fracasso da Rodada Doha foi que ele representava péssimo augúrio para as negociações muito mais complexas sobre aquecimento global.
Não é verdade, como escreveu o Wall Street Journal em editorial com o título alarmista de “O fim do livre comércio?”, que “pela primeira vez desde o início das rodadas comerciais após a Segunda Guerra Mundial, uma tentativa de expandir o comércio mundial terminou em fiasco”.
A reunião de Bruxelas de dezembro de 1990, que deveria ter coroado a Rodada Uruguai, acabou em naufrágio ainda mais grave, pois o que estava em jogo era então muito mais ambicioso do que na Rodada Doha. Só que, naquela ocasião, o impasse foi de certo modo positivo por ter oposto os favoráveis à liberalização do comércio agrícola - Brasil, Argentina, outros latino-americanos, com o apoio indeciso dos EUA - à aliança desejosa de manter a agricultura fora das regras comerciais: europeus, japoneses, sul-coreanos.
Desta vez, o insólito é que Brasil e União Européia, os dois pólos da negociação agrícola, haviam concordado com resultado satisfatório, embora modesto, na agricultura. A remoção do obstáculo maior, graças à flexibilidade construtiva de Amorim e Mandelson, obrigou a tirarem a máscara os que se escondiam atrás dos contendores principais nesse tema.
A ambigüidade dos americanos tornou-se patente. Outrora advogados da abertura, há mais de 15 anos vêm adotando sucessivas leis agrícolas crescentemente protecionistas no uso do mais pernicioso dos subsídios: o que acarreta superprodução, pois vinculado ao volume produzido. A última dessas leis acaba de ser adotada com maioria de três quintos, anulando o veto presidencial.
Não querendo contrariar o lobby agrícola em ano eleitoral, os EUA teimaram em manter o direito de aumentar os subsídios até o dobro do que estão utilizando hoje. Não contentes, pressionaram a Índia e a China a aceitarem importações americanas, mesmo subvencionadas.
Era compreensível que indianos e chineses não assistissem impassíveis à liquidação de suas agriculturas pela concorrência subsidiada e desleal, embora legal segundo as atuais regras. A saída para os asiáticos foi insistir numa salvaguarda ou válvula de escape, pela qual suspenderiam as concessões em caso de aumento de mais de 10% das importações. Essa pedra no meio do caminho é que fez descarrilar a negociação.
A diferença é que, em Bruxelas, 17 anos atrás, a rodada parou porque ao menos um dos lados desejava a liberalização do comércio agrícola. Agora, em Genebra, nenhum dos responsáveis pelo impasse desejava de verdade um êxito que significasse concessões.
Querendo ou não, os americanos criaram uma condição impossível. Impor aos demais importações distorcidas por subvenções é tão absurdo que apenas se explica pelo desejo de impedir um acordo ou a aceitação desse risco.
Mas se era justo que os asiáticos resistissem a tal despropósito, o mesmo não se pode dizer da intenção de se protegerem também da concorrência de Brasil, Argentina e outros cuja produção não é favorecida por subsídios. Afinal, nosso mercado está sendo inundado pelas importações chinesas e a China tem muito a ver com o agravamento do déficit brasileiro em conta corrente e o primeiro déficit da indústria.
Pela salvaguarda de 10%, em oito dos últimos dez anos nossas vendas de soja para o mercado chinês seriam suspensas, como não faz muito tempo o foram, sob pretextos protecionistas. Se não pudermos exportar livremente os únicos produtos nos quais somos mais competitivos que chineses e indianos, como poderíamos equilibrar o jogo diante da invasão asiática em manufaturas e serviços?
O mais grave é que o recém-adquirido poderio econômico chinês começa a ser utilizado de modo decisivo para reforçar o protecionismo agrícola. Raramente a China coincide com a Índia em comércio, questões de fronteira, o exílio do dalai-lama e temas estratégicos em que a aproximação indiano-americana é vista com desconfiança.
A aliança da China com a Índia, Indonésia e quase outros 40 países que exigem a salvaguarda em agricultura é preocupante para o Brasil. Entre eles se encontram, com efeito, quase todas as dez nações onde se dará o essencial do crescimento da população mundial nas próximas décadas (só a Índia representa cerca de 20% da expansão). Mais de três quartos do aumento da demanda de carne e cereais virá desse grupo.
A perda ou redução de acesso a tais mercados pelas nossas exportações agrícolas não poderão ser compensadas pelos mercados dos ricos. O Japão e a Europa têm população em declínio e sua demanda de commodities tende a se estagnar. Os EUA, onde a população ainda cresce, são grandes produtores e exportadores de produtos agrícolas e concorrentes diretos nossos.
Não tenho certeza de que faria sentido concluir a Rodada Doha com avanço modesto em relação aos subsídios internos americanos e às barreiras de acesso ao mercado europeu, consagrando, ao mesmo tempo, uma salvaguarda exagerada em favor de países em desenvolvimento. Teríamos de pagar o resultado limitado de curto prazo por concessões industriais que agravariam ainda mais o efeito desastroso do câmbio desfavorável.
Valeria a pena fazer esse sacrifício, aceitando o retrocesso da salvaguarda excessiva e comprometendo assim a futura expansão nos mercados dos asiáticos e outros? A Argentina, no passado principal propugnadora da liberalização agrícola, ao lado da Austrália, julgou que dessa vez o balanço de perdas e ganhos não compensava o sacrifício de sua indústria, em fase de recuperação.
O Brasil foi neutro na questão, por não querer submeter o Grupo dos 20 a uma tensão maior ainda do que a provocada pela nossa aceitação do compromisso. Compreende-se a decisão do ponto de vista tático. Contudo, em termos estratégicos, a manutenção do grupo apenas se justifica se ele deixar de ser uma aliança defensiva para dizer “não” e passar a ajudar na promoção dos objetivos legítimos de expandir as oportunidades de exportações agrícolas brasileiras para todos os mercados, do Norte e do Sul.
Não é verdade, como escreveu o Wall Street Journal em editorial com o título alarmista de “O fim do livre comércio?”, que “pela primeira vez desde o início das rodadas comerciais após a Segunda Guerra Mundial, uma tentativa de expandir o comércio mundial terminou em fiasco”.
A reunião de Bruxelas de dezembro de 1990, que deveria ter coroado a Rodada Uruguai, acabou em naufrágio ainda mais grave, pois o que estava em jogo era então muito mais ambicioso do que na Rodada Doha. Só que, naquela ocasião, o impasse foi de certo modo positivo por ter oposto os favoráveis à liberalização do comércio agrícola - Brasil, Argentina, outros latino-americanos, com o apoio indeciso dos EUA - à aliança desejosa de manter a agricultura fora das regras comerciais: europeus, japoneses, sul-coreanos.
Desta vez, o insólito é que Brasil e União Européia, os dois pólos da negociação agrícola, haviam concordado com resultado satisfatório, embora modesto, na agricultura. A remoção do obstáculo maior, graças à flexibilidade construtiva de Amorim e Mandelson, obrigou a tirarem a máscara os que se escondiam atrás dos contendores principais nesse tema.
A ambigüidade dos americanos tornou-se patente. Outrora advogados da abertura, há mais de 15 anos vêm adotando sucessivas leis agrícolas crescentemente protecionistas no uso do mais pernicioso dos subsídios: o que acarreta superprodução, pois vinculado ao volume produzido. A última dessas leis acaba de ser adotada com maioria de três quintos, anulando o veto presidencial.
Não querendo contrariar o lobby agrícola em ano eleitoral, os EUA teimaram em manter o direito de aumentar os subsídios até o dobro do que estão utilizando hoje. Não contentes, pressionaram a Índia e a China a aceitarem importações americanas, mesmo subvencionadas.
Era compreensível que indianos e chineses não assistissem impassíveis à liquidação de suas agriculturas pela concorrência subsidiada e desleal, embora legal segundo as atuais regras. A saída para os asiáticos foi insistir numa salvaguarda ou válvula de escape, pela qual suspenderiam as concessões em caso de aumento de mais de 10% das importações. Essa pedra no meio do caminho é que fez descarrilar a negociação.
A diferença é que, em Bruxelas, 17 anos atrás, a rodada parou porque ao menos um dos lados desejava a liberalização do comércio agrícola. Agora, em Genebra, nenhum dos responsáveis pelo impasse desejava de verdade um êxito que significasse concessões.
Querendo ou não, os americanos criaram uma condição impossível. Impor aos demais importações distorcidas por subvenções é tão absurdo que apenas se explica pelo desejo de impedir um acordo ou a aceitação desse risco.
Mas se era justo que os asiáticos resistissem a tal despropósito, o mesmo não se pode dizer da intenção de se protegerem também da concorrência de Brasil, Argentina e outros cuja produção não é favorecida por subsídios. Afinal, nosso mercado está sendo inundado pelas importações chinesas e a China tem muito a ver com o agravamento do déficit brasileiro em conta corrente e o primeiro déficit da indústria.
Pela salvaguarda de 10%, em oito dos últimos dez anos nossas vendas de soja para o mercado chinês seriam suspensas, como não faz muito tempo o foram, sob pretextos protecionistas. Se não pudermos exportar livremente os únicos produtos nos quais somos mais competitivos que chineses e indianos, como poderíamos equilibrar o jogo diante da invasão asiática em manufaturas e serviços?
O mais grave é que o recém-adquirido poderio econômico chinês começa a ser utilizado de modo decisivo para reforçar o protecionismo agrícola. Raramente a China coincide com a Índia em comércio, questões de fronteira, o exílio do dalai-lama e temas estratégicos em que a aproximação indiano-americana é vista com desconfiança.
A aliança da China com a Índia, Indonésia e quase outros 40 países que exigem a salvaguarda em agricultura é preocupante para o Brasil. Entre eles se encontram, com efeito, quase todas as dez nações onde se dará o essencial do crescimento da população mundial nas próximas décadas (só a Índia representa cerca de 20% da expansão). Mais de três quartos do aumento da demanda de carne e cereais virá desse grupo.
A perda ou redução de acesso a tais mercados pelas nossas exportações agrícolas não poderão ser compensadas pelos mercados dos ricos. O Japão e a Europa têm população em declínio e sua demanda de commodities tende a se estagnar. Os EUA, onde a população ainda cresce, são grandes produtores e exportadores de produtos agrícolas e concorrentes diretos nossos.
Não tenho certeza de que faria sentido concluir a Rodada Doha com avanço modesto em relação aos subsídios internos americanos e às barreiras de acesso ao mercado europeu, consagrando, ao mesmo tempo, uma salvaguarda exagerada em favor de países em desenvolvimento. Teríamos de pagar o resultado limitado de curto prazo por concessões industriais que agravariam ainda mais o efeito desastroso do câmbio desfavorável.
Valeria a pena fazer esse sacrifício, aceitando o retrocesso da salvaguarda excessiva e comprometendo assim a futura expansão nos mercados dos asiáticos e outros? A Argentina, no passado principal propugnadora da liberalização agrícola, ao lado da Austrália, julgou que dessa vez o balanço de perdas e ganhos não compensava o sacrifício de sua indústria, em fase de recuperação.
O Brasil foi neutro na questão, por não querer submeter o Grupo dos 20 a uma tensão maior ainda do que a provocada pela nossa aceitação do compromisso. Compreende-se a decisão do ponto de vista tático. Contudo, em termos estratégicos, a manutenção do grupo apenas se justifica se ele deixar de ser uma aliança defensiva para dizer “não” e passar a ajudar na promoção dos objetivos legítimos de expandir as oportunidades de exportações agrícolas brasileiras para todos os mercados, do Norte e do Sul.
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