segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A CRISE CHEGA "ÀS GIGANTES" DO SETOR AUTOMOTIVO - PARTE 3 : DETROIT CONTRA WALL STREET !

A crise financeira atropelou a indústria automobilística nos Estados Unidos - mas o grande motor do setor produtivo americano há muito tempo começou a falhar. É o que afirma o sociólogo Adalberto Moreira Cardoso, organizador, ao lado do colega Alex Covarrubias, de A Indústria Automobilística nas Américas - A Reconfiguração Estratégica e Social dos Atores Produtivos, lançado em 2006 pela Editora UFMG.
Doutor pela Universidade de São Paulo e professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Cardoso vê com preocupação o risco de falência das três gigantes de Detroit: Chrysler, Ford e General Motors (GM). Para ele, o grande erro das montadoras americanas foi avançar o sinal na produção de utilitários esportivos de alto luxo - os famosos SUVs (Sport Utility Vehicle), que faziam a cabeça do novo-riquismo perdulário da era da bolha financeira.
A entrevista foi realizada por Ivan Marsiglia e publicada no jornal O Estado de S.Paulo, 23-11-2008.
Essa semana o mundo assistiu à impressionante cena dos CEOs da Chrysler, da Ford e da GM passando o pires em busca de ajuda do governo para evitar sua falência.

O que está acontecendo com as supermontadoras de Detroit?
A indústria automobilística americana vai mal das pernas faz algum tempo. O que a crise fez foi aprofundar um problema que ela vinha enfrentando desde que os preços do petróleo dispararam. São várias as razões, mas em especial o fato de que, nos últimos 20 anos, essas montadoras investiram em modelos de automóveis cada vez mais caros.


O senhor está falando dos SUVs, os utilitários esportivos de alto luxo?
Exatamente. São automóveis 40, 50, até 100% mais caros que os convencionais. Utilizam mais aço, borracha, materiais de alto custo. E, por isso, são pesados, pedem motores possantes e consomem muita gasolina. São carros fabricados olhando para trás - para a época em que o petróleo era fonte abundante e barata. Essas montadoras basearam-se em premissas inteiramente equivocadas, do ponto de vista ecológico e de sua própria sobrevivência. Uma opção que decorreu justamente da enorme facilidade de crédito nos últimos anos. Qualquer pessoa era capaz de comprar uma casa e um automóvel do preço de uma casa. Aí o crédito secou, afetando a indústria automobilística dos EUA tanto quanto o mercado de imóveis.
Era uma estratégia insustentável...
Já há alguns anos, vivemos uma crise de superprodução de automóveis. Existe uma capacidade instalada no mundo superior à capacidade de consumo. Antes isso não aparecia porque o crédito barato permitia que as pessoas trocassem de carro todo ano. Aí veio a crise e o problema, que estava sendo empurrado com a barriga, revelou-se incontornável.
Já em 2005, com condições de crédito favoráveis para todos, o lucro da Toyota Motors ultrapassou os ganhos da GM, Ford e Chrysler juntas.


Em 2007, ela virou a maior empresa automobilística do mundo. Como se explica tal dianteira?
A Toyota é uma empresa muito particular. Ela fez uma opção global muito cedo, antes das outras. Se instalou na Europa, na Ásia, nos EUA e na América do Sul com um programa de expansão e investimento muito bem-sucedido em uma faixa de mercado. Apostou em veículos para a classe média e em alguns de altíssima qualidade. Fez picapes e utilitários de alto luxo como os da GM, só que muito mais baratos. É uma questão de eficiência. A Toyota é capaz de reduzir custos de produção via organização do trabalho, introdução de tecnologias e inovação no uso de materiais.


O fordismo, modelo de produção em massa idealizado por Henry Ford que revolucionou a indústria na primeira metade do século 20, foi superado pelo sistema Toyota?
A Ford adotou o modo Toyota, assim como todo o mundo. A indústria inteira incorporou o chamado lean manufacturing, que é uma forma de produção enxuta, comandada pelo consumo: você tem uma demanda na ponta, que produz resultados em cadeia para trás. A indústria produz de acordo com a demanda real dos clientes, sem estoques nem intermediários. O problema das americanas foi investir em um produto que se mostrou equivocado.


A indústria automobilística tem ocupado um lugar central no setor produtivo da economia. Essa mudança do fordismo para o toyotismo reflete alguma transformação mais profunda no capitalismo?
Não se pode falar em uma substituição do fordismo pelo toyotismo porque este último nunca alcançou a sistematicidade e a universalidade do primeiro. Toda a indústria automobilística até os anos 60 era fordista, com a possível exceção da Volvo, na Suécia. Hoje, o modelo Toyota foi generalizado, mas com adaptações, no que a literatura costuma chamar de “hibridização”. Nos anos 80, imaginava-se que haveria um processo de convergência total para os padrões Toyota. Não foi o que ocorreu, e é por isso que meu livro fala na “tese da convergência revisitada”: a receita Toyota foi incorporada segundo a cultura e as instituições locais. Não houve uma convergência para um padrão toyotista, mas um abandono do universalismo fordista.


Mas o toyotismo espalhou-se para outros setores da economia, não?
Ele é visível na concepção - que é uma idéia Toyota - de que uma montadora de automóveis deve montá-los, não fabricá-los. Qual o core da indústria do carro? O motor. Então, isso eu produzo. Tudo o mais, compro de fornecedores. Isso consolidou-se como a forma contemporânea de organização do capitalismo. E aí está o ponto onde eu queria chegar: o poder de contaminação da falência de uma GM hoje seria brutal.


Ou seja, as montadoras de Detroit não estão blefando quando falam em um colapso sem precedentes caso elas não sejam socorridas?
Se a GM quebrar, o que acho que eles não vão deixar, as conseqüências para capitalismo que conhecemos serão brutais. Não sou catastrofista, mas sem dúvida ocorreria uma enorme reação em cadeia. Há milhares de empresas operando em torno da GM. E, se você junta Ford e Chrysler, certamente pode afetar entre 10 e 15% de todo o capitalismo industrial. E aí podem ir junto as japonesas, as coreanas, tudo... Afeta setores para trás, como indústrias de plástico, vidro, fios, computadores, lâmpadas, circuitos. Outros adiante, na manutenção depois que o carro vai à rua. E até quando ele morre: há uma verdadeira indústria do desperdício nos EUA, metalúrgicas que vivem da reciclagem de veículos.


A gestão das montadoras americanas tem sido adequada?
Não sou especialista em gestão, mas essas grandes empresas são paquidermes, mastodontes com dificuldade de se mover. Para se ter uma idéia, nos anos 80 a GM entrou em crise. Teve que chamar um consultor de fora, o (engenheiro basco José Ignacio Lopez de) Arriortúa, para reestruturar a empresa de alto a baixo. Ele pôs 100 mil pessoas na rua. Não cortou na carne - tirou foi uma perna da companhia. Em cinco anos a GM era de novo a maior empresa automobilística do mundo.


O senhor acha que a crise de hoje na GM é semelhante à dos anos 80?
Os custos de produção ficaram, de novo, altos em relação à indústria do resto do mundo, mesmo com o dólar tão fraco. A diferença é que agora a GM tem um álibi para se ajoelhar diante do Tesouro americano: “Por que vocês podem dar US$ 700 bilhões para os bancos e nada para a economia real?” Vinte anos atrás, teria colocado um Arriortúa para reestruturar sua empresa. Hoje, encontra a possibilidade de sobreviver sem ter que cortar a perna.
O presidente do Comitê de Bancos do Senado, o democrata Christopher Dodd, afirmou que as montadoras ‘abordaram os desafios do século 21 com uma mente do século 20’. Seu colega, o democrata Jon Tester, disse que ‘se o modelo de negócios não for mudado, as montadoras vão falir não importa quanta assistência o governo proporcione’. Eles têm razão?
Total razão. As empresas estão se aproveitando do fato de que o governo americano está fragilizado diante da crise. O que está acontecendo nos EUA é uma corrida do capital pelo acesso ao fundo público. É evidente que o que está acontecendo é resultado de políticas equivocadas do banco central americano desde os anos 90. O Estado tem culpa, e muita culpa, sobre o que ocorreu. Mas é claro também que, enquanto estavam ganhando no mercado financeiro, os agentes econômicos jamais criticaram o banco central. Quando a coisa acaba... onde está o dinheiro? No Tesouro.


A estrutura do trabalho vai mudar depois da crise? Mais automação, menos empregos? Fala-se em renegociação de direitos trabalhistas...
As conseqüências para os trabalhadores serão as piores possíveis. No curto prazo, demissões em massa deverão se alastrar por vários países - e bater no Brasil, inclusive. A indústria automobilística tem por tradição nas crises aumentar a taxa de automação. E, quando as vendas voltam, os empregos não são repostos na mesma proporção em que foram perdidos.
E a queda do preço do petróleo? Pode ajudar as montadoras?
Isso é transitório. Não dá para imaginar que o petróleo vá se manter nesse patamar nos próximos cinco ou dez anos. Basta a economia mundial começar a andar que os preços subirão novamente. Se antes eles estavam irrealisticamente altos em US$ 140 (o barril), estão agora irrealisticamente baixos em US$ 50. Mas é claro que ajuda na queda da inflação e dos custos.
Vamos falar do Brasil.


De que maneira a crise das montadoras americanas vai afetar suas subsidiárias brasileiras?
A GM brasileira é das poucas rentáveis no mundo. E não só a GM: nossa indústria automobilística em geral é rentável. Mas a restrição de crédito no Brasil, que já está acontecendo, vai afetar a demanda por carro e logo a produção interna. Vínhamos exportando em torno de 30% da produção. Não vamos mais.


Como se explica o fato de que essas montadoras sejam mais eficientes aqui do que em Detroit?
As montadoras no Brasil adotaram uma divisão bem-sucedida: importam os veículos de alta gama, produzidos nos EUA ou na Europa, e produzem aqui os mais adequados a mercados emergentes - onde o consumo de massa se volta para automóveis mais baratos. Como nossa indústria é competitiva, conseguiu operar com preços compatíveis, e lucrou tanto no mercado interno quanto no externo.


E o que esperar dos próximos anos?
Sabe-se que o ano que vem será muito pior do que este e, possivelmente, 2010 será melhor que 2009. A economia vai travar, embora não devamos entrar em recessão. Mas a regra básica diz que, se há crise de confiança, o cidadão suspende o consumo de bens desse tipo. Já houve esse efeito imediato, de redução das vendas de carro neste mês e no anterior. O emprego ainda não foi afetado: em setembro tivemos a menor taxa de desemprego histórica, 7,3%. E, em breve, o 13º chega às mãos dos trabalhadores. O Natal deverá empurrar os efeitos da crise para o ano que vem.
Ao primeiro sinal de problemas, tanto o presidente Lula quanto o governador José Serra apressaram-se em oferecer ajuda às montadoras brasileiras. Eles estão certos?
Sim porque, como eu disse, elas são muito eficientes. Operam com custos adequados, são competitivas internacionalmente, desenvolvem tecnologia própria e sabem reduzir custos. Ajudá-las aqui faz ainda mais sentido do que nos EUA. Fora o fato de que a indústria automobilística no Brasil é responsável por 14% do PIB . É muita coisa.


Em um mundo onde o discurso da sustentabilidade ganha cada vez mais espaço, e com ele a ênfase no transporte coletivo, o senhor acha que a indústria automobilística terá seu espaço reduzido no futuro?
Não creio. A indústria tem uma capacidade incrível de se reestruturar. Virão o carro a hidrogênio, a hélio, a água... E o enriquecimento dos países periféricos vai gerar toda uma nova classe média sedenta pelo automóvel. Eles ficarão mais ecológicos, mas não serão substituídos pelo transporte coletivo.

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