O mundo deve enfrentar agora, ao mesmo tempo, três enormes problemas: recessão, segurança energética e aquecimento global. Mas se crises econômicas são passageiras, a mudança climática é o grande desafio do século. Imaginar que a desaceleração econômica acabará sendo benéfica ao clima porque se emitirá menos, é "duplamente tacanho", reage o economista José Eli da Veiga. "Ao custo do desemprego?", continua, procurando apontar que a eventual desaceleração econômica deve correr pelo trilho da busca de tecnologias limpas.
A reportagem e a entrevista é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 12-11-2008.
O professor do Departamento de Economia da USP está em Londres desde fevereiro mergulhado nos dois grandes temas que lhe são caros: a pesquisa de indicadores de desenvolvimento sustentável que "possam ajudar a acabar com a ditadura do PIB per capita como barômetro do progresso" e o estudo das estratégias de combate ao aquecimento global. No Reino Unido, que junto com a Alemanha ocupa a vanguarda do debate ambiental atual, Eli da Veiga é pesquisador-associado do Capability & Sustainability Centre, centro ligado à Universidade de Cambridge.
É impossível saber agora, registra ele, o quanto a crise financeira pode atingir o debate ambiental. Os pessimistas passaram a olhar para a questão como se fosse um artigo de luxo; os otimistas falam num "Green New Deal", espécie de salvação verde global. Com o foco na negociação internacional, que deve esquentar no mês que vem com a reunião das Nações Unidas sobre clima, na Polônia, e desembocar no fim de 2009 com novo acordo global em reunião marcada para Copenhague, Eli da Veiga defende que os 30 países responsáveis por 80% das emissões de gases-estufa do mundo acertem seus ponteiros antes de qualquer coisa, e depois convençam os outros 170 a segui-los. "Nesse caso, sairá um regime internacional muito melhor que o Protocolo de Kyoto. Mas se esses 30 países continuarem a brincar de queda-de-braço, é melhor tirar o cavalo da chuva."
Não é de hoje que os economistas acreditam que para reduzir emissões de gases-estufa é preciso criar novos impostos. Eli da Veiga aponta uma proposta inovadora, que surgiu nos EUA e inverte o caminho tradicional de tentar fixar tetos para as emissões - a idéia é limitar a produção da energia fóssil. O professor explica como consumidores com estilo de vida de baixo consumo de energia e carbono sairiam ganhando, em entrevista feita por telefone e e-mail.
Eis a entrevista.
Como a crise financeira pode atingir o debate ambiental?
Por enquanto é impossível saber. Difícil responder, agora, qual vai ser a resultante da combinação entre os vetores que tendem a promover recuo e os que, ao contrário, podem gerar aceleração da já iniciada busca de inovações limpas, verdes, sustentáveis. Pelo menos três grandes incógnitas impedem que se saiba se estão certos os que estão tirando a conclusão mais óbvia, ou, ao contrário, se têm razão os otimistas, aqueles que estão dizendo que essa crise é simultaneamente uma grande oportunidade para que surja um "Green New Deal", como estava na capa da "Newsweek" de duas semanas atrás, uma espécie de salvação verde.
Quais são os três pontos em aberto?
A primeira incógnita é a profundidade e a extensão das recessões que mal começaram. A perspectiva no Reino Unido é de alto desemprego no fim do ano que vem. Nos EUA não está muito diferente. O segundo ponto é a natureza da articulação da cúpula que poderia levar ao que está sendo chamado de um novo Bretton Woods. A crise mostra que o FMI e toda a estrutura montada em Bretton Woods já estão batendo pino e seria hora de repensar tudo. E ainda a importância que os problemas ambientais globais acabarão tendo na pauta desta cúpula. No meu ponto de vista, este é o ponto principal. Aqui na Inglaterra já se notam recuos em certas áreas da construção civil, por exemplo, mas ao mesmo tempo incentivos inéditos para que a indústria automobilística acelere a viabilização de veículos elétricos e híbridos.
No caso específico do combate à mudança climática, os países do Leste Europeu e a Espanha já disseram que agora não vai dar para pensar nisso...
Como já existe um amplo consenso de que o aquecimento global é um fenômeno irreversível - ao contrário das recessões econômicas, sempre passageiras - não é provável que prevaleçam os apelos em favor de uma involução. A crise evidentemente abre espaço para as lideranças mais recalcitrantes, mas elas parecem minoritárias na Europa. E é difícil imaginar que a posição do governo dos EUA possa vir a ser pior que a da gestão Bush. Então, não parece haver motivo para desespero. O mundo terá que enfrentar três gravíssimos problemas: recessão, segurança energética e aquecimento global. Aqui no Reino Unido o tema da mudança climática não saiu da pauta.
Não houve nenhum recuo?
O governo deu uma tremenda recuada em relação ao plano de construção das chamadas "eco-towns". Eram umas dez e agora anunciaram que só poderão fazer uma ou duas, por várias questões, não só a crise. Mas no mesmo dia havia outra notícia dizendo que o governo inglês irá dar tremendos créditos para a indústria automobilística investir na busca do carro elétrico, do carro híbrido. Tenho lido sinais que vão nas duas direções. Desde indícios de que, com a crise, essas coisas vão parecer luxo, a outras que dizem o contrário, que a saída da crise será investir cada vez mais nos mercados abertos pela economia verde.
A recessão global pode significar menos emissões de gases-estufa, embora esta seja uma conclusão tacanha? Ao preço do desemprego? É duplamente tacanha. Primeiro, porque é preciso encontrar maneiras de planejar a desaceleração econômica que será benéfica aos países centrais, e evitar a todo custo que esse caminho seja um desastre, com os horríveis impactos sociais causados pelo aumento do desemprego. Segundo, porque as recessões não estarão todas atreladas umas às outras e isso permite que muitos países da semiperiferia, e até da periferia, possam ter surtos de crescimento tão sujos quanto os do passado, em vez de começarem a encontrar novas vias, mais limpas, de crescimento.
O senhor é um crítico das análises econômicas que se baseiam no PIB. O IDH é um bom índice? O que há de novidade na discussão do IDH?
O PIB, como indicador de desempenho econômico, é uma coisa obsoleta, que só continua a ser usada devido a uma fortíssima inércia institucional e às dificuldades de se encontrar um substituto que supere suas deficiências. E é isso que também explica a precariedade do IDH, um índice sintético de desenvolvimento e não de crescimento. Ele resulta de uma média de três indicadores referentes à saúde, à educação e ao nível de vida material. Infelizmente, para avaliar este último usa-se uma versão ligeiramente corrigida do PIB per capita, o que gera brutais distorções. Por exemplo, segundo o IDH, haveria o mesmo grau de desenvolvimento entre países tão diversos quanto os Emirados Árabes Unidos e o Chile. Isso só ocorre porque o PIB per capita dos Emirados é muitas vezes superior ao do Chile, o que compensa a sua péssima situação educacional, motivada, como se sabe, pela discriminação cultural contra as mulheres. Não parece haver cabimento em dizer que um país como esse é tão desenvolvido quanto o Chile. O que há de novidade é que o PNUD está preparando uma completa reformulação do IDH, assim como dos índices de pobreza, para que tais problemas sejam superados a partir do relatório de 2010.
A Islândia está no topo do IDH mundial. E é um país que quebrou na crise financeira atual.
Dá para fazer alguma relação?
Um país que tem um IDH muito alto, como é o caso da Islândia, é certamente muito desenvolvido. Seus habitantes têm altíssima expectativa de vida, são muito cultos e bem ricos. É apenas isso que mostra o IDH. Mas qualquer país muito desenvolvido está agora sujeito a quebrar, se tiver feito apostas erradas na maluquice financeira global das últimas décadas. Uma coisa pouco ou nada tem a ver com a outra.
O que o sr. está fazendo em Londres?
Desenvolvendo uma pesquisa sobre indicadores de desenvolvimento sustentável que possam ajudar a acabar com a ditadura do PIB per capita como barômetro de progresso.
Como o tema mudança climática é percebido no Reino Unido?
Esse talvez seja o país onde existe maior consciência social sobre a necessidade de combater o aquecimento global e ajudar as nações que terão mais dificuldade em se adaptar a ele. Por aqui chega a ser comum passar pela frente de uma igreja e notar uma placa convidando a participar de reuniões semanais sobre o problema da mudança climática.
Que expectativa se pode ter do próximo encontro sobre clima na Polônia e da esperada conferência em Copenhague, em 2009? O sr. é cético em relação às negociações internacionais dentro da ONU?
O problema das negociações internacionais no quadro da convenção do clima, da ONU, é que elas dependem de barganhas bizantinas no âmbito da imensa diversidade de responsabilidades, riscos e interesses que afetam quase 200 países. Por isso, parece necessário que um grupo de nações-chave consiga chegar a uma boa base de acordo antes da reunião de 2009. Quais os critérios que permitem apontar essas nações-chave? Há três básicos que levam a listas diferentes. O primeiro é o das responsabilidades históricas sobre o aquecimento global, que prevaleceu em Kyoto. O segundo é o da capacidade de enfrentamento do problema, que se refere mais ao presente do que ao passado: quem pode mais deve assumir mais e fazer mais. E o terceiro se refere ao futuro: a tão falada sustentabilidade. Penso que este terceiro é de longe o mais importante dos três. Mostra que 30 países, entre os quais 10 centrais e 20 semiperiféricos, são responsáveis por 80% do problema.
Um país que tem um IDH muito alto, como é o caso da Islândia, é certamente muito desenvolvido. Seus habitantes têm altíssima expectativa de vida, são muito cultos e bem ricos. É apenas isso que mostra o IDH. Mas qualquer país muito desenvolvido está agora sujeito a quebrar, se tiver feito apostas erradas na maluquice financeira global das últimas décadas. Uma coisa pouco ou nada tem a ver com a outra.
O que o sr. está fazendo em Londres?
Desenvolvendo uma pesquisa sobre indicadores de desenvolvimento sustentável que possam ajudar a acabar com a ditadura do PIB per capita como barômetro de progresso.
Como o tema mudança climática é percebido no Reino Unido?
Esse talvez seja o país onde existe maior consciência social sobre a necessidade de combater o aquecimento global e ajudar as nações que terão mais dificuldade em se adaptar a ele. Por aqui chega a ser comum passar pela frente de uma igreja e notar uma placa convidando a participar de reuniões semanais sobre o problema da mudança climática.
Que expectativa se pode ter do próximo encontro sobre clima na Polônia e da esperada conferência em Copenhague, em 2009? O sr. é cético em relação às negociações internacionais dentro da ONU?
O problema das negociações internacionais no quadro da convenção do clima, da ONU, é que elas dependem de barganhas bizantinas no âmbito da imensa diversidade de responsabilidades, riscos e interesses que afetam quase 200 países. Por isso, parece necessário que um grupo de nações-chave consiga chegar a uma boa base de acordo antes da reunião de 2009. Quais os critérios que permitem apontar essas nações-chave? Há três básicos que levam a listas diferentes. O primeiro é o das responsabilidades históricas sobre o aquecimento global, que prevaleceu em Kyoto. O segundo é o da capacidade de enfrentamento do problema, que se refere mais ao presente do que ao passado: quem pode mais deve assumir mais e fazer mais. E o terceiro se refere ao futuro: a tão falada sustentabilidade. Penso que este terceiro é de longe o mais importante dos três. Mostra que 30 países, entre os quais 10 centrais e 20 semiperiféricos, são responsáveis por 80% do problema.
O aquecimento global não será resolvido em uma assembléia de 200, não tem jeito.
Que países são esses?
São os que estão emitindo muito. Alguns são surpreendentes. Tem os desenvolvidos, os emergentes, e mais Tailândia, Turquia, Filipinas, Argélia. Então, esta é a saída: se esses 30 conseguirem se acertar antes da reunião de Copenhague, terão condições de persuadir os demais 170. Nesse caso, de Copenhague sairá um regime internacional muito melhor que o Protocolo de Kyoto. Mas se esses 30 continuarem a brincar de queda-de-braço, é realmente o caso de se tirar o cavalo da chuva.
Emitir ficará mais caro?
Kyoto não ajudou, continua baratíssimo emitir. Por isso, há hoje três propostas básicas em discussão. O bem conhecido "cap-and-trade", que já mostrou que não funciona para o aquecimento global, mesmo que tenha funcionado muito bem para a chuva ácida. Naquele caso, eram poucos os causadores do problema, e as soluções tecnológicas estavam na prateleira. Para os gases-estufa ocorre o inverso: são inúmeros os poluidores e ainda não há inovações que realmente resolvam. Não pode haver melhor evidência que o mercado europeu de carbono: serviu para muita maracutaia entre a burocracia e as grandes empresas geradoras de energia, sem resultado significativo. Todos os economistas que analisaram a questão, dos mais caretas aos mais alternativos, chegaram à conclusão que para o caso do carbono seria muito melhor um bom imposto sobre as emissões. Toda e qualquer emissão seria taxada, desde as termelétricas até a dona-de-casa, passando pelos transportes.
É isso que está na mesa de negociações?
Surgiu no debate americano uma terceira e interessantíssima proposta, que foi chamada de "cap-and-dividend" ou "cap-and-return". Em vez de fixar tetos para as emissões, o que é muito complexo, pois é imenso o número de emissores, melhor seria limitar a própria produção de energia fóssil. Petróleo, gás e carvão passariam a ter cotas de oferta. Isso encareceria bastante o consumo de todas as energias sujas.
Para evitar que as altíssimas margens extraordinárias geradas pelo racionamento caíssem no colo do pequeno oligopólio de empresas que produzem energias de origem fóssil, o governo as taxaria e devolveria à população tudo o que arrecadasse, de forma igualitária. Um esquema que já funciona bem para os royalties do petróleo, tanto no Alasca, quanto na província canadense de British Columbia. Ou seja, o governo daria violenta mordida nos lucros extras do setor de energia suja, e a arrecadação geraria transferências para os domicílios. Obviamente sairiam ganhando os que já tivessem um estilo de vida ecoeficiente em termos energéticos. E surgiria um incentivo para que mudassem de estilo de vida as famílias perdulárias em termos energéticos. No lugar de milhares de torneirinhas para tentar monitorar os principais emissores, bastariam algumas válvulas para um efetivo controle dos que fornecem as energias sujas.
Que países são esses?
São os que estão emitindo muito. Alguns são surpreendentes. Tem os desenvolvidos, os emergentes, e mais Tailândia, Turquia, Filipinas, Argélia. Então, esta é a saída: se esses 30 conseguirem se acertar antes da reunião de Copenhague, terão condições de persuadir os demais 170. Nesse caso, de Copenhague sairá um regime internacional muito melhor que o Protocolo de Kyoto. Mas se esses 30 continuarem a brincar de queda-de-braço, é realmente o caso de se tirar o cavalo da chuva.
Emitir ficará mais caro?
Kyoto não ajudou, continua baratíssimo emitir. Por isso, há hoje três propostas básicas em discussão. O bem conhecido "cap-and-trade", que já mostrou que não funciona para o aquecimento global, mesmo que tenha funcionado muito bem para a chuva ácida. Naquele caso, eram poucos os causadores do problema, e as soluções tecnológicas estavam na prateleira. Para os gases-estufa ocorre o inverso: são inúmeros os poluidores e ainda não há inovações que realmente resolvam. Não pode haver melhor evidência que o mercado europeu de carbono: serviu para muita maracutaia entre a burocracia e as grandes empresas geradoras de energia, sem resultado significativo. Todos os economistas que analisaram a questão, dos mais caretas aos mais alternativos, chegaram à conclusão que para o caso do carbono seria muito melhor um bom imposto sobre as emissões. Toda e qualquer emissão seria taxada, desde as termelétricas até a dona-de-casa, passando pelos transportes.
É isso que está na mesa de negociações?
Surgiu no debate americano uma terceira e interessantíssima proposta, que foi chamada de "cap-and-dividend" ou "cap-and-return". Em vez de fixar tetos para as emissões, o que é muito complexo, pois é imenso o número de emissores, melhor seria limitar a própria produção de energia fóssil. Petróleo, gás e carvão passariam a ter cotas de oferta. Isso encareceria bastante o consumo de todas as energias sujas.
Para evitar que as altíssimas margens extraordinárias geradas pelo racionamento caíssem no colo do pequeno oligopólio de empresas que produzem energias de origem fóssil, o governo as taxaria e devolveria à população tudo o que arrecadasse, de forma igualitária. Um esquema que já funciona bem para os royalties do petróleo, tanto no Alasca, quanto na província canadense de British Columbia. Ou seja, o governo daria violenta mordida nos lucros extras do setor de energia suja, e a arrecadação geraria transferências para os domicílios. Obviamente sairiam ganhando os que já tivessem um estilo de vida ecoeficiente em termos energéticos. E surgiria um incentivo para que mudassem de estilo de vida as famílias perdulárias em termos energéticos. No lugar de milhares de torneirinhas para tentar monitorar os principais emissores, bastariam algumas válvulas para um efetivo controle dos que fornecem as energias sujas.
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