"A autodestruição econômica a que assistimos foi prevista por Emmanuel Mounier, meio século atrás: "Por mais racional que seja, uma estrutura econômica baseada no desprezo das exigências das pessoas contém os germes de sua própria condenação", escreve Rubens Ricupero, ex-secretário-geral da UNCTAD, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 26-10-2008.
O historiador britânico Paul Kennedy ganhou celebridade há 20 anos, quando escreveu Ascensão e Queda das Grandes Potências e demonstrou, por exemplos históricos, que todo império hegemônico sucumbe quando não pode mais arcar com os custos militares necessários para manter suas conquistas e influência externa.
A reportagem e a entrevista é de Ruth Costas e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 26-10-2008.
O livro foi traduzido para 23 idiomas e tornou-se um clássico no estudo das relações internacionais. Mas as referências ao trabalho talvez nunca tenham sido tão freqüentes como agora, com os EUA atolados em conflitos no Iraque e no Afeganistão, com um déficit externo crescente, a imagem deteriorada em todo o globo - e diante de uma das piores crises econômicas desde a Grande Depressão de 1929.
“É o início do fim do império?”
Toda vez que os EUA enfrentam problemas há quem anteveja o “declínio americano”, citando seu trabalho. Com a atual crise, qual o real tamanho do estrago?
A crise é mais um sinal de um lento e gradual declínio do poderio americano, mas não quer dizer que haverá uma queda livre. A história nos mostra que grandes potências demoram para perder sua supremacia. O Império Turco-Otomano levou 250 anos para entrar em decadência. O britânico teve seu auge no reinado da rainha Vitória (1819-1901) e durou pelo menos mais 80 anos. A teoria do meu livro é a de que toda grande potência precisa manter o equilíbrio entre gastos militares e capacidade econômica. Os problemas começam quando as atividades militares se expandem muito ou a economia perde o vigor e não pode mais arcar com tais custos. O presidente George W. Bush aumentou os gastos militares ao mesmo tempo em que reduziu impostos. A crise financeira só piorou tudo. A situação é certamente mais crítica hoje do que há 20 anos. Mas os EUA ainda estão numa posição muito à frente do restante do mundo e se o novo presidente, o Congresso e o Fed (o banco central americano) conseguirem reestabilizar o país num período relativamente curto e reduzir os gastos no Oriente Médio, a recuperação pode surpreender. E aí as referências ao meu livro diminuirão por um tempo. Ainda há um longo caminho pela frente antes que os EUA tornem-se apenas um país a mais. Dependerá do futuro novo líder do país frear o declínio com políticas sábias ou acelerá-lo com políticas estúpidas, de expansão.
Mas há mais espaço no mundo de hoje para o multilateralismo?
Sim. Há mudanças no equilíbrio de forças globais. Após 20 anos, estou sendo questionado sobre se estamos vendo o fim do período unipolar, de dominação americana, inaugurado com o colapso da União Soviética. Se pensarmos em poder militar, a mudança é pequena. Hoje os EUA respondem por 51% dos gastos de defesa globais, embora suas forças tenham vulnerabilidades - como lidar com o terrorismo e a guerra assimétrica. No campo econômico, há uma alteração mais significativa.
Como a crise pode afetar a capacidade de os EUA manterem tantas tropas no exterior e sua capacidade de persuasão militar?
Há um grande debate hoje no Pentágono sobre a capacidade de os EUA se envolverem em um novo conflito, caso ele seja inevitável, uma vez que o orçamento para a Defesa deve ser mantido ou reduzido. O Exército e os fuzileiros navais dizem que a única forma de lutar uma nova guerra é aumentando o número de soldados em campo de batalha. Já a Marinha e a Força Aérea acham que deveria haver uma aposta em armamento sofisticado e de alta tecnologia no caso hipotético de um conflito com a Coréia do Norte, por exemplo. Obviamente, qualquer dessas alternativas exigiria grandes esforços e há muitos especialistas militares nos EUA que duvidam que o país conseguiria embrenhar-se em um novo conflito de maneira sustentável. Se o novo conflito se alargasse, chegaria o momento em que não haveria mais tropas, nem suprimentos, nem armas. Isso de certa forma também já mostra alguns limites da superpotência. Os EUA puderam lutar em duas frentes na 2ª Guerra e se sentiam confiantes com a possibilidade de ter de fazer o mesmo na Guerra Fria.
Que mudanças esperar do novo governo americano no que diz respeito a política externa?
Não acho que haverá diferenças significativas na política externa de um governo de Barack Obama ou de John McCain. Qualquer um que chegue à Casa Branca terá de lidar com a crise financeira e encontrar uma maneira de reduzir as tropas no Iraque em um curto espaço de tempo. Qualquer um terá de apoiar a Europa e tentará ser firme com (o primeiro-ministro russo) Vladimir Putin. E nenhum saberá o que fazer sobre o Afeganistão. Apesar dos discursos diferentes, seja quem for que ganhe as eleições, no curto prazo terá suas políticas definidas por esses desafios imediatos, que limitarão seu campo de ação. Acredito que até McCain deve ser mais inclinado ao multilateralismo do que sua retórica na campanha permite supor. E certamente, o próximo governo terá de se afastar bastante das políticas do governo Bush. Com a crise, acabou o tempo em que os neoconservadores de Washington podiam tentar agir sozinhos.
Eis o artigo.
As análies da crise financeira falam de tudo, menos de moral e de política. Dão a impressão de que o problema se limita a aspectos técnicos, sem vinculação com os valores éticos e independentes das relações de poder.
Joseph Stiglitz foi o único a observar que a crise teria sobre o fundamentalismo de mercado o mesmo efeito que teve a queda do Muro de Berlim sobre o comunismo. Poderia ter acrescentado que a ligação dos dois eventos não é só comparativa. O fim do socialismo foi um maremoto político. O vácuo ideológico e o desequilíbrio de forças conseqüentes tornaram possível aquilo que era antes inconcebível: a absoluta hegemonia dos mercados financeiros e os excessos responsáveis pelo colapso atual.
Nos Estados Unidos, o setor financeiro saltou de 10% do total dos lucros corporativos em 1980 para 40% em 2006, apesar de gerar apenas 5% dos empregos!
As análies da crise financeira falam de tudo, menos de moral e de política. Dão a impressão de que o problema se limita a aspectos técnicos, sem vinculação com os valores éticos e independentes das relações de poder.
Joseph Stiglitz foi o único a observar que a crise teria sobre o fundamentalismo de mercado o mesmo efeito que teve a queda do Muro de Berlim sobre o comunismo. Poderia ter acrescentado que a ligação dos dois eventos não é só comparativa. O fim do socialismo foi um maremoto político. O vácuo ideológico e o desequilíbrio de forças conseqüentes tornaram possível aquilo que era antes inconcebível: a absoluta hegemonia dos mercados financeiros e os excessos responsáveis pelo colapso atual.
Nos Estados Unidos, o setor financeiro saltou de 10% do total dos lucros corporativos em 1980 para 40% em 2006, apesar de gerar apenas 5% dos empregos!
Não se avança sobre quase metade dos lucros da economia sem contar com a cumplicidade do sistema político. A mudança de poder que abriu o caminho à hegemonia financeira foi, nesse período, a "revolução" neoconservadora de Reagan e de Thatcher, consolidada por Clinton e pela "terceira via" de Blair.
Sua ideologia era a mistura de globalização com liberalização. Globalização entendida como unificação em escala planetária dos mercados, sobretudo para as finanças. Liberalização no sentido de eliminar tudo que pudesse limitar as oportunidades de negócios. A fiscalização ficaria por conta da suposta capacidade auto-regulatória dos mercados.
Nesse clima, poucos ganharam muito, mas a desigualdade explodiu, o emprego se tornou precário, o salário real estagnou, multiplicaram-se as fusões com cortes de milhares de vagas, os melhores empregos industriais foram terceirizados para países de baixos salários.
O apodrecimento moral desse fim de reino era já perceptível em 2002, durante os escândalos da Enron, da WorldCom e de outras empresas que ocasionaram ao índice Nasdaq a perda de três quartos do seu valor, cerca de US$ 5 trilhões!
Na época, o banqueiro Felix Rohatyn escreveu que o dano causado ao capitalismo norte-americano era de tal gravidade que nem Lênin teria feito melhor!
Exagero, pois tudo se esqueceu: o papel dos bancos de investimento como o Goldman Sachs e o Merrill Lynch, a desmoralização das agências de avaliação de risco e de auditoria, todos novamente co-autores do desastre de agora. A lei Sarbanes-Oxley, as normas mais rigorosas de transparência contábil, nada foi capaz de evitar a repetição da catástrofe em dimensão maior. Alegava-se que o sacrifício dos seres humanos e da moral era o preço a pagar pela eficiência e pela racionalidade impostas pela globalização.Contudo, longe de ganhar vigor e competitividade, o setor produtivo norte-americano parece um campo de ruínas.
A autodestruição econômica a que assistimos foi prevista por Emmanuel Mounier, meio século atrás: "Por mais racional que seja, uma estrutura econômica baseada no desprezo das exigências das pessoas contém os germes de sua própria condenação".
Da mesma forma que no New Deal dos anos 1930, só uma nova correlação de forças políticas que devolva sentido moral à economia e a recoloque a serviço do interesse do maior número salvará o modelo norte-americano de recaídas periódicas e de inelutável declínio em competitividade produtiva e adesão dos cidadãos.
Sua ideologia era a mistura de globalização com liberalização. Globalização entendida como unificação em escala planetária dos mercados, sobretudo para as finanças. Liberalização no sentido de eliminar tudo que pudesse limitar as oportunidades de negócios. A fiscalização ficaria por conta da suposta capacidade auto-regulatória dos mercados.
Nesse clima, poucos ganharam muito, mas a desigualdade explodiu, o emprego se tornou precário, o salário real estagnou, multiplicaram-se as fusões com cortes de milhares de vagas, os melhores empregos industriais foram terceirizados para países de baixos salários.
O apodrecimento moral desse fim de reino era já perceptível em 2002, durante os escândalos da Enron, da WorldCom e de outras empresas que ocasionaram ao índice Nasdaq a perda de três quartos do seu valor, cerca de US$ 5 trilhões!
Na época, o banqueiro Felix Rohatyn escreveu que o dano causado ao capitalismo norte-americano era de tal gravidade que nem Lênin teria feito melhor!
Exagero, pois tudo se esqueceu: o papel dos bancos de investimento como o Goldman Sachs e o Merrill Lynch, a desmoralização das agências de avaliação de risco e de auditoria, todos novamente co-autores do desastre de agora. A lei Sarbanes-Oxley, as normas mais rigorosas de transparência contábil, nada foi capaz de evitar a repetição da catástrofe em dimensão maior. Alegava-se que o sacrifício dos seres humanos e da moral era o preço a pagar pela eficiência e pela racionalidade impostas pela globalização.Contudo, longe de ganhar vigor e competitividade, o setor produtivo norte-americano parece um campo de ruínas.
A autodestruição econômica a que assistimos foi prevista por Emmanuel Mounier, meio século atrás: "Por mais racional que seja, uma estrutura econômica baseada no desprezo das exigências das pessoas contém os germes de sua própria condenação".
Da mesma forma que no New Deal dos anos 1930, só uma nova correlação de forças políticas que devolva sentido moral à economia e a recoloque a serviço do interesse do maior número salvará o modelo norte-americano de recaídas periódicas e de inelutável declínio em competitividade produtiva e adesão dos cidadãos.
O historiador britânico Paul Kennedy ganhou celebridade há 20 anos, quando escreveu Ascensão e Queda das Grandes Potências e demonstrou, por exemplos históricos, que todo império hegemônico sucumbe quando não pode mais arcar com os custos militares necessários para manter suas conquistas e influência externa.
A reportagem e a entrevista é de Ruth Costas e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 26-10-2008.
O livro foi traduzido para 23 idiomas e tornou-se um clássico no estudo das relações internacionais. Mas as referências ao trabalho talvez nunca tenham sido tão freqüentes como agora, com os EUA atolados em conflitos no Iraque e no Afeganistão, com um déficit externo crescente, a imagem deteriorada em todo o globo - e diante de uma das piores crises econômicas desde a Grande Depressão de 1929.
“É o início do fim do império?”
é a pergunta que este professor da Universidade de Yale, no Estado americano de Connecticut, tem tido de responder nas últimas semanas. “Pode ser um sinal desse declínio, mas estão errados os que esperam uma queda livre”, diz. Kennedy, de 63 anos.
Eis a entrevista.
Eis a entrevista.
Toda vez que os EUA enfrentam problemas há quem anteveja o “declínio americano”, citando seu trabalho. Com a atual crise, qual o real tamanho do estrago?
A crise é mais um sinal de um lento e gradual declínio do poderio americano, mas não quer dizer que haverá uma queda livre. A história nos mostra que grandes potências demoram para perder sua supremacia. O Império Turco-Otomano levou 250 anos para entrar em decadência. O britânico teve seu auge no reinado da rainha Vitória (1819-1901) e durou pelo menos mais 80 anos. A teoria do meu livro é a de que toda grande potência precisa manter o equilíbrio entre gastos militares e capacidade econômica. Os problemas começam quando as atividades militares se expandem muito ou a economia perde o vigor e não pode mais arcar com tais custos. O presidente George W. Bush aumentou os gastos militares ao mesmo tempo em que reduziu impostos. A crise financeira só piorou tudo. A situação é certamente mais crítica hoje do que há 20 anos. Mas os EUA ainda estão numa posição muito à frente do restante do mundo e se o novo presidente, o Congresso e o Fed (o banco central americano) conseguirem reestabilizar o país num período relativamente curto e reduzir os gastos no Oriente Médio, a recuperação pode surpreender. E aí as referências ao meu livro diminuirão por um tempo. Ainda há um longo caminho pela frente antes que os EUA tornem-se apenas um país a mais. Dependerá do futuro novo líder do país frear o declínio com políticas sábias ou acelerá-lo com políticas estúpidas, de expansão.
Mas há mais espaço no mundo de hoje para o multilateralismo?
Sim. Há mudanças no equilíbrio de forças globais. Após 20 anos, estou sendo questionado sobre se estamos vendo o fim do período unipolar, de dominação americana, inaugurado com o colapso da União Soviética. Se pensarmos em poder militar, a mudança é pequena. Hoje os EUA respondem por 51% dos gastos de defesa globais, embora suas forças tenham vulnerabilidades - como lidar com o terrorismo e a guerra assimétrica. No campo econômico, há uma alteração mais significativa.
Depois da 2ª Guerra os EUA tinham 50% do PIB mundial. Hoje têm 20%. A Europa responde pela mesma porcentagem e a China, por 15%. E as previsões de crescimento da Ásia são maiores. Há uma necessidade maior de cooperação na área econômica e financeira que ficou evidente com a crise - o Fed não podia lidar com o problema sozinho porque ele tornou-se global. Todos os bancos centrais agiram. Além disso, também houve uma redução significativa do poder ideológico dos EUA. Pesquisas mostram que a imagem do país nunca esteve tão ruim no mundo.
Como a crise pode afetar a capacidade de os EUA manterem tantas tropas no exterior e sua capacidade de persuasão militar?
Há um grande debate hoje no Pentágono sobre a capacidade de os EUA se envolverem em um novo conflito, caso ele seja inevitável, uma vez que o orçamento para a Defesa deve ser mantido ou reduzido. O Exército e os fuzileiros navais dizem que a única forma de lutar uma nova guerra é aumentando o número de soldados em campo de batalha. Já a Marinha e a Força Aérea acham que deveria haver uma aposta em armamento sofisticado e de alta tecnologia no caso hipotético de um conflito com a Coréia do Norte, por exemplo. Obviamente, qualquer dessas alternativas exigiria grandes esforços e há muitos especialistas militares nos EUA que duvidam que o país conseguiria embrenhar-se em um novo conflito de maneira sustentável. Se o novo conflito se alargasse, chegaria o momento em que não haveria mais tropas, nem suprimentos, nem armas. Isso de certa forma também já mostra alguns limites da superpotência. Os EUA puderam lutar em duas frentes na 2ª Guerra e se sentiam confiantes com a possibilidade de ter de fazer o mesmo na Guerra Fria.
Que mudanças esperar do novo governo americano no que diz respeito a política externa?
Não acho que haverá diferenças significativas na política externa de um governo de Barack Obama ou de John McCain. Qualquer um que chegue à Casa Branca terá de lidar com a crise financeira e encontrar uma maneira de reduzir as tropas no Iraque em um curto espaço de tempo. Qualquer um terá de apoiar a Europa e tentará ser firme com (o primeiro-ministro russo) Vladimir Putin. E nenhum saberá o que fazer sobre o Afeganistão. Apesar dos discursos diferentes, seja quem for que ganhe as eleições, no curto prazo terá suas políticas definidas por esses desafios imediatos, que limitarão seu campo de ação. Acredito que até McCain deve ser mais inclinado ao multilateralismo do que sua retórica na campanha permite supor. E certamente, o próximo governo terá de se afastar bastante das políticas do governo Bush. Com a crise, acabou o tempo em que os neoconservadores de Washington podiam tentar agir sozinhos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário