quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A DESFINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA GLOBAL

"No primeiro semestre deste ano, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) estimava em US$ 600 trilhões o valor dos derivativos em circulação no mundo. Ou seja, mais de dez vezes o Produto Mundial Bruto", informa J. Carlos de Assis, presidente do Instituto Desemprego Zero, em artigo publicado no jornal Valor, 01-10-2008. Segundo ele, o Plano Paulson, não terá sucesso, pois "a quantia de US$ 700 bilhões parece muito, mas é apenas aproximadamente 7% do montante das hipotecas sob suspeita, algo próximo a US$ 13 trilhões". Ele afirma que "a atual crise, que chamo de "desfinanceirização" global, demoliu um dos ícones do pensamento neoliberal, o dogma da auto-regulação dos mercados. O próximo a cair será o dogma do orçamento equilibrado (ou do superávit primário), sobretudo se o desemprego voltar a crescer".

Eis o artigo.
O capital financeiro, dos anos 80 para cá, tinha licença para matar. E quase matou o capital produtivo. A esse processo se deu o nome de globalização, embora analistas menos entusiastas o tenham chamado de "financeirização". Não é novo. Teve uma preliminar nos anos 20, auge do liberalismo pregado nos Estados Unidos pelo presidente John Calvin Coolidge, ídolo do presidente Ronald Reagan. Como se viu, naquele caso acabou em Grande Depressão. Agora teria que acabar em algo parecido.
"Financeirização" é o modo pelo qual o capital se descola do setor produtivo, baseado este no valor trabalho. É a acumulação de valores fictícios, sem produção. Em seus momentos terminais assume a forma de uma vertigem especulativa completamente descolada de ativos reais.
É o que temos visto. No primeiro semestre deste ano, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) estimava em US$ 600 trilhões o valor dos derivativos em circulação no mundo. Ou seja, mais de dez vezes o Produto Mundial Bruto.
A crise no mercado subprime americano é apenas a ponta do iceberg. Não estamos diante de uma "bolha" imobiliária similar à "bolha" das bolsas em 1987. Agora, o que está em jogo é "a bolha", não "uma bolha". Como na dança das cadeiras, o capital especulativo que gira em torno do planeta, sob diferentes formas, vai ser impelido a se sentar. E não haverá cadeira para todos.
Pode-se prever perdas gigantescas em todos os mercados, com uma rápida tentativa de migração para o único título seguro, os papéis dos Tesouros dos países centrais, ou a terra.
Por isso, o pacote de George W. Bush, mesmo melhorado pelo Congresso americano, não terá sucesso. A quantia de US$ 700 bilhões parece muito, mas é apenas aproximadamente 7% do montante das hipotecas sob suspeita, algo próximo a US$ 13 trilhões.
Os aplicadores, que podemos chamar sem qualquer escrúpulo moral de especuladores, terão perdas gigantescas. A questão, pois, não é saber o volume de perdas, mas avaliar como isso se refletirá no mercado real, onde está a renda das famílias normais e o emprego. E como o governo se comportará para evitar o caos social subseqüente.
O impacto na renda e no emprego será inevitável, pois, a despeito da função antitrabalho e anti-social dos mercados especulativos, as instituições que o constituem empregam dezenas de milhares de pessoas, a maioria delas especializada. Ficarão sem emprego num primeiro momento. Isso afetará a demanda agregada e, por esse caminho, as expectativas de investimento, gerando mais desemprego - agora, na economia real. O processo pode transformar-se numa espiral descendente, caso o governo não aja de forma sábia.
O remédio é conhecido desde o New Deal, o programa econômico de Roosevelt: ativação da demanda agregada através de déficits públicos. Até que isso seja efetivado, porém, haverá uma luta ideológica nos Estados Unidos, assim como houve antes do New Deal. Conservadores insistirão em proteger os investidores por cima, enquanto democratas, mais sensíveis a demandas sociais, procurarão dar proteção social por baixo.
É evidente que, a médio prazo, num país democrático de cidadania ampliada, os democratas acabarão vencendo.
É preciso deixar claro que a negativa de proteção a investidores/especuladores não é apenas, nem principalmente, uma questão moral. É uma questão de eficácia. Um investidor num título subprime, ou em qualquer derivativo, é alguém que estava com dinheiro sobrando e queria ganhar mais. Uma perda o atingirá no patrimônio, mas nem em todo ele ou na renda corrente. Se o governo compra seu título podre, ele vai vai gastar o valor equivalente em consumo ou investimento. Vai entesourá-lo sob alguma forma, talvez em ouro. Com isso, não dará qualquer contribuição ao aumento da produção ou da renda real da sociedade, nem estimulará o emprego.
No Brasil, já temos uma taxa de desemprego que justifica um grande programa de garantia de emprego no estilo New Deal. Num simpósio realizado em maio, no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), discutiu-se o Projeto Cidade Cidadã - um Programa de Emprego Garantido associado a um Programa de Trabalho Aplicado nas periferias metropolitanas -, que resolveria simultaneamente os problemas de desemprego e de degeneração das áreas favelizadas e ajudaria a resolver o problema da segurança, e finalmente do desemprego em geral. É hora de pensar em aplicá-lo, o que dependerá de mobilização social e decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A atual crise, que chamo de "desfinanceirização" global, demoliu um dos ícones do pensamento neoliberal, o dogma da auto-regulação dos mercados. O próximo a cair será o dogma do orçamento equilibrado (ou do superávit primário), sobretudo se o desemprego voltar a crescer.
Mesmo fazendo superávit primário, será possível financiar o projeto Cidade Cidadã, que custará, ao longo de cinco anos, cerca de R$ 40 bilhões por ano. Recorde-se que, na eleição de 1932 nos Estados Unidos, em plena Grande Depressão, ambos os candidatos falavam em equilibrar o orçamento. Só quando assumiu é que Franklin Delano Roosevelt se deu conta de que a nação estaria em crise ainda maior se insistisse nesse dogma. Seria bom que nossos líderes pensassem nisso.


DO NEOLIBERALISMO AO DESENVOLVIMENTISMO

A receita liberal e conservadora demonstra que "o capitalismo desregulado é indomável: o mercado financeiro é capaz de cometer suicídio por overdose", escreve João Sicsú, diretor de Estudos Macroeconômicos do Ipea e professor do IE-UFRJ, em artigo publicado no jornal Valor, 01-10-2008. Segundo ele, no Brasil "está em curso uma transição de um modelo liberal de promessas (não cumpridas) para um modelo desenvolvimentista de resultados".

Eis o artigo.
No início do segundo mandato de FHC, foi estabelecido o tripé: I) política fiscal - realizar superávits primários necessários para reduzir a relação dívida/PIB; II) política monetária - utilizar a taxa de juros como único instrumento de controle da inflação; III) política cambial - estabelecer um regime de câmbio flutuante em que o mercado determinaria a taxa de câmbio e, portanto, o BC não precisaria acumular reservas em grandes volumes. O tripé macroeconômico de FHC era liberal e conservador.
Tal modelo era tratado como solução única, inquestionável. Entretanto, o país e o mundo vivem hoje um momento diferente: a agenda foi desinterditada. Está sob agudo questionamento o modelo liberal que se dizia estar apoiado nas boas práticas internacionais. Quais? Aquelas praticadas pelas autoridades responsáveis pela regulamentação do sistema financeiro americano? Aquelas elogiadas e sugeridas pelo Lehman Brothers, AIG e o Merrill Lynch?
Os liberais não entregaram o que prometeram. Argumentam que a causa do insucesso foi que o modelo deveria ter sido aplicado em conjunto com reformas estruturais que não foram realizadas - embora isto não seja verdade, porque países como Argentina e Equador realizaram todas as recomendações. Dizem: "No caso dos países latino-americanos faltaram as reformas". Mas o que dizer da economia americana em crise? Lá o que faltou? Lá se revela o esperado. O capitalismo desregulado é indomável: o mercado financeiro é capaz de cometer suicídio por overdose.
O modelo econômico vigente no Brasil, iniciado na era FHC, foi flexibilizado, especialmente, a partir da instituição do PAC, em 2007. No Brasil, o pilar do regime cambial que aceita acentuadas valorizações e desvalorizações mostrou-se inadequado ao equilíbrio das contas externas e à estabilidade monetária. O pilar do sistema de controle da inflação, baseado na utilização de um único instrumento, mostrou que precisa ser ampliado. E o terceiro pilar, focado apenas na geração de superávits primários e na redução da relação dívida/PIB, mostrou-se limitado diante das necessidades de construção de infra-estrutura pública, geração de empregos e universalização das políticas sociais.
Nos dias de hoje, à chamada responsabilidade fiscal foram associadas as responsabilidades social e a geração de empregos. O equilíbrio orçamentário será alcançado como resultado do vigor e da qualidade do crescimento - e não como fruto de políticas e reformas de redução de direitos sociais. E esta melhor qualidade refere-se a um tipo de crescimento que gera milhares de negócios e milhões de empregos formais. E ainda a um quesito ímpar: a taxa de variação do investimento é superior entre duas e três vezes a taxa de crescimento do PIB.
A administração fiscal enriqueceu-se, possui agora objetivos múltiplos. O resultado orçamentário nominal de janeiro a julho de 2008 foi deficitário em apenas 0,53% do PIB. O PAC desembolsou neste ano, até agosto, R$ 6,7 bilhões, gerando milhares de empregos. A trajetória da dívida pública segue bem comportada: em dezembro de 2007 era 42,7% do PIB, em agosto de 2008 caiu para 40,6%. As despesas correntes do governo federal, como proporção do PIB, se reduziram de 25,9%, entre janeiro e julho de 2007, para 24%, em igual período deste ano. Na mesma base de comparação, os gastos previdenciários foram reduzidos de 6,5% para 6,2% do PIB.
O PIB apresentou crescimento de 6,1% no segundo trimestre. Há oito trimestres, o PIB cresce a taxas superiores a 4%. O investimento voltou a apresentar forte crescimento; no segundo trimestre deste ano, comparado com igual período de 2007, cresceu 16,2%. Há 13 trimestres seguidos, as taxas de crescimento do investimento superam o dobro da taxa de crescimento do PIB.
A taxa de desemprego metropolitana, em agosto, foi reduzida a 7,6%. A média de 2007 foi de 9,8%. Foram criados (admissões menos demissões), nos primeiros sete meses de 2008, quase 1,6 milhão de novos empregos com carteira - ao longo de todo o ano passado foram criados 1,62 milhão.
A responsabilidade com a manutenção de níveis moderados de inflação está incorporada à agenda do país. A inflação não é mais controlada somente com elevações da taxa de juros. Outros instrumentos também são utilizados. A redução da Cide é um exemplo. O aumento do crédito para a produção agrícola foi outro instrumento utilizado.
Depois de encerrar o primeiro semestre com uma média mensal de 0,6%, o IPCA reduziu seu ritmo de alta em julho (0,5%) e em agosto (0,28%). Este resultado positivo deve-se exclusivamente à desaceleração da corrida dos preços dos alimentos que, em junho, alcançaram 15,8%, no acumulado de 12 meses, e em agosto se reduziram para 13,8%. Os demais preços (exceto alimentos), no acumulado de 12 meses, atingiram, em agosto, 4,1%.
A política liberal de câmbio flutuando livremente sem intervenções do BC foi enterrada. O país acumulou mais de US$ 200 bilhões em reservas, para utilizá-las quando necessário. O BC realiza leilões de moeda estrangeira, mostrando sua disposição em reduzir a volatilidade dos mercados. Contudo, cabe mencionar que é neste pilar, o das relações com o exterior, que o modelo deu passos mais vagarosos: a conta corrente está deficitária e os movimentos bruscos da liquidez curto-prazista são uma ameaça.
Enfim, está em curso uma transição de um modelo liberal de promessas (não cumpridas) para um modelo desenvolvimentista de resultados. Os passos têm sido lentos e cuidadosos, mas a direção é correta. Os números aí estão como provas. Contudo, é indispensável uma redução ainda maior das vulnerabilidades externas. No front externo, a situação é muito delicada e merece toda a atenção.
Diante da crise financeira internacional, os liberais tentarão interromper essa transição reapresentando o seu conhecido cardápio. Afirmarão ainda que qualquer outro caminho é aventura. Vão propor reformas de redução de direitos sociais e sugerir que é hora de praticar políticas de contenção do crescimento dos negócios produtivos e da geração de empregos - como se já não bastasse o sacrifício imposto pela própria crise aos trabalhadores e empresários. Se o país decidir paralisar para esperar a tempestade passar e somente então reingressar na rota do desenvolvimento, terá realizado apenas mais um "vôo de galinha" entre 2006 e 2008. Um "vôo de galinha" a mais não faz a história mudar. Portanto, a hora é de persistir na rota e de buscar caminhos próprios.

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