quarta-feira, 15 de outubro de 2008

NEW DEAL NELES !

Só ação coletiva empreendida através do Estado democrático impediu o mergulho da sociedade americana no desconhecido. Seria difícil imaginar o destino das economias capitalistas, sem que a mão visível do Estado as tivesse protegido do autoflagelo da mão invisível do mercado. A análise é do economista Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo em referência ao New Deal, plano econômico que retirou o EUA da profunda recessão nos anos 30 em artigo no Valor, 14-10-2008.

Eis o artigo.

"O restabelecimento da confiança do público nos bancos privados do país é um dos mais animadores resultados de nossos esforços como nação. Todos sabem que o sistema bancário privado só existe em virtude da permissão e da regulamentação do povo, exercidas através de seu governo. A sabedoria política, no entanto, exige que os bancos não apenas sejam seguros, mas que seus recursos sejam plenamente utilizados na vida econômica do país. Com essa finalidade, vinte anos atrás, o governo assumiu a responsabilidade de prover os meios necessários para que o crédito fosse controlado, não por poucos bancos privados, mas por um corpo com prestígio e autoridade pública. A resposta a essa exigência é o Federal Reserve System." - Franklin Delano Roosevelt, 1935

A eleição presidencial americana de 1932 foi disputada no momento em que a depressão econômica atingia seu nadir. Entre 1929 e 1932, a renda nacional havia caído 38%, regredindo para o nível de 1922. O desemprego avançou celeremente e jogou na rua 12 (possivelmente 15) milhões de pessoas. O declínio da renda e a retração aguda do consumo fizeram eco à dramática contração dos gastos de investimento das empresas e à desastrada política fiscal e monetária da administração republicana. Foi generalizada a bancarrota na indústria e na agricultura, e o colapso dos preços tornou insuportável para o setor produtivo a carga financeira do endividamento contraído nos anos de euforia. O sistema bancário veio abaixo com grande estrondo, cujos decibéis podem ser avaliados pela falência de 5 mil instituições.

Disputavam o voto popular o então presidente Hoover, republicano, e o democrata Franklin Delano Roosevelt. A campanha republicana insistia nas causas externas da depressão e seu candidato prometia como remédio o fortalecimento do dólar nos marcos do padrão ouro ("The dollar should ring true on every counter in the world"). Roosevelt assinalava as causas internas do desastre econômico e prometia um novo pacto social para a América, capaz de incluir, especialmente, "os que estavam esquecidos no fundo da pirâmide econômica".

Roosevelt assumiu a presidência em março de 1933 e proclamou em seu discurso inaugural que "a única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo". Não se pode dizer - nem mesmo os que avaliam idilicamente a experiência social e econômica do New Deal - que aqueles tempos foram de coerência e firmeza. Também não se pode negar que foram tempos de coragem e grandeza.

O presidente Roosevelt, eleito segundo as regras de clientela do sistema político americano, foi, no entanto, capaz de articular o movimento de grupos sociais heterogêneos em uma grande coalizão progressista. Caminhou, nem sempre em linha reta, mas com persistência, na busca da recuperação econômica através da reconstituição dos níveis de rentabilidade das empresas e dos rendimentos da massa assalariada.

Nos famosos "Cem Dias" de 1933, foram rapidamente inaugurados programas de emergência para os desempregados, mediante assistência direta e garantia de renda mínima. Estes programas evoluíram nos anos posteriores, com a criação da Work Projects Administration, em 1935, concebida para um amplo esforço de reabsorção do desemprego apoiado em obras públicas. Harry Hopkins, idealizador e responsável pela execução do programa da WPA, tinha como princípio básico o seguinte lema: "A fome não se discute".

A débâcle financeira foi enfrentada com o Emergency Bank Bill de 9 de março de 1933 e pelo Glass-Steagall Act de junho do mesmo ano. Esses dois instrumentos legais permitiram um maior controle do Federal Reserve sobre o sistema bancário, facilitando o refinanciamento dos débitos das empresas, sobretudo da imensa massa de dívidas dos agricultores, e promovendo uma profunda reestruturação do sistema bancário. Isto significou uma forte centralização da intervenção do Estado sobre os bancos privados e garantias mínimas para os depositantes, medidas indispensáveis para a execução de uma política de liquidez e de direcionamento do crédito, em benefício da recuperação econômica.

Tomadas estas medidas de emergência relativas ao desemprego e à desordem financeira, o governo constitui a National Recovery Administration - órgão encarregado do planejamento industrial - e a Agricultural Adjustment Administration, incumbido de executar a política de preços, estoques e comercialização dos produtos agrícolas.

Muitos anos depois, os debates sobre a experiência do New Deal concentram-se sobre o êxito limitado do programa. Os críticos sublinham a debilidade da recuperação (que só ganha sustentação com a mobilização bélica) e o constante ziguezague da política econômica. Poucos consideram as conseqüências políticas e sociais da verdadeira "revolução democrática" que contrastava fortemente com a tragédia vivida pela Europa continental, com a ascensão do nazi-fascismo.

Karl Polanyi, em sua obra a Grande Transformação, escreveu sobre esse momento da história. Ele mostrou como a revolta contra o despotismo do "econômico" poderia se revelar tão brutal quanto os males que a economia destravada impunham à sociedade. O avanço do coletivismo, Polanyi conclui, não era uma patologia ou uma conspiração irracional de classes ou grupos, mas sim o resultado da degeneração dos nexos mercantis. O desamparo entregou os indivíduos livres à desesperada busca do führer opressor.

Com o colapso dos mecanismos econômicos, a superpolitização das relações sociais tornou-se inevitável. O despotismo da mão invisível teria de ser substituído pela tirania visível do chefe. A vida política foi surrupiada pelas polícias da vida que invadiram todas as esferas da convivência, como se fossem suspeitas quaisquer formas de espontaneidade.

O New Deal demonstrou que era possível governar o ciclo econômico num ambiente de liberdade e de conquistas sociais. Só ação coletiva empreendida através do Estado democrático impediu o mergulho da sociedade americana no desconhecido. Seria difícil imaginar o destino das economias capitalistas, sem que a mão visível do Estado as tivesse protegido do autoflagelo da mão invisível do mercado. Somente a substituição dos mecanismos "automáticos" do mercado pela ação consciente do Estado foi capaz de evitar a desordem social e o avanço do totalitarismo à esquerda e à direita. O Estado regulou as relações econômicas fundamentais e o New Deal preparou o imaginário das sociedades para a defesa da democracia no embate com o nazi-facismo e para a reorganização econômica social e política que orientou o estrondoso sucesso do capitalismo do pós-guerra.

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